Título: A nossa corrupção e a deles
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Globo, 20/09/2007, Opinião, p. 7

A então deputada Angela Guadagnin (PT-SP) entregou-se, de corpo e alma, à defesa dos "mensaleiros" nas comissões e no plenário da Câmara. No fim, quando um colega de partido beneficiou-se da onda de absolvições, ela protagonizou a "dança da impunidade", que lhe valeu fama instantânea e custou-lhe a reeleição. O senador Aloizio Mercadante (PT-SP), operando sob instruções do Planalto, engajou-se furtivamente na missão de reverter intenções de voto favoráveis à cassação de Renan Calheiros. No fim da sessão clandestina, na qual o Senado absolveu o homem das vacas milagrosas, emergiu um Mercadante pálido, que, balbuciando, declarou seu voto de abstenção e, contra as evidências, negou seu engajamento na cabala de votos.

Mercadante não se distingue de Guadagnin por seus atos, mas unicamente por se envergonhar deles - ou, numa interpretação cínica, por um cálculo eleitoral superior. Tanto quanto a deputada dançarina, o senador imprimiu à sua biografia política o credo indelével segundo o qual é tolerável a conversão do mandato popular num passaporte para o tráfico de interesses e a fabricação de patrimônios privados.

O PT não absolveu sozinho o pecuarista milagreiro - e nem todos os senadores do partido se curvaram ao credo de Mercadante. Mas o partido de Lula soldou a maioria parlamentar que hasteou nas sombras a bandeira do escárnio. Das entranhas do partido que acusava e condenava numa única sentença, brandindo a espada de fogo da "ética na política", nasceu um partido que tudo tolera e justifica - e que, hoje, em nome da coerência, teria de recusar o processo de impeachment de Fernando Collor.

Coerência é o que busca o ministro Tarso Genro, quando declara que seu partido cometeu o erro histórico de se apresentar como o guardião solitário da "ética na política". Na tardia retratação, há algo mais que a marca inconfundível do oportunismo. De fato, a política democrática não comporta uma narrativa do confronto da virtude contra o vício, cuja lógica exclui o horizonte da alternância de poder. O jogo democrático se faz, na maior parte do tempo, pelo exercício da razão instrumental, que inclui a negociação, a conciliação e a acomodação de legítimos interesses eleitorais.

A retratação de Genro veicula uma reivindicação razoável. O PT quer ser avaliado à luz dos critérios comuns da política democrática - não pelos parâmetros inatingíveis da ética absoluta que cobrava dos outros. Mas há um limite para o exercício da razão instrumental, que é o respeito à regra legal e à integridade das instituições. Esse limite foi, uma vez mais, ultrapassado.

Coerência é também o que busca, por um outro caminho, a filósofa petista Marilena Chaui. No auge da crise do "mensalão", Chaui teceu o discurso da negação, que proporcionou aos petistas um ponto de fuga teórico. Ela explicou que o balcão tentacular de negócios não existia, a não ser na forma de uma "construção fantasmagórica da mídia". Agora, depois que o STF aceitou a denúncia contra a quadrilha do "mensalão", a filósofa cortesã reformou seu diagnóstico, mas apenas para fabricar uma peça de delinqüência intelectual em dois atos.

O primeiro ato é uma filosofia da corrupção: "Nenhum governante governa sem fazer alianças e negociações com outros partidos. Essa negociação tende à corrupção. Essa compra e venda ocorreu sistematicamente nos governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e FHC." O segundo é uma corrupção da filosofia: "Mas o PT e seu presidente operário, como ousam fazer o mesmo que os partidos da classe dominante? Que ousadia absurda! Os meios de comunicação transformaram a situação em um caso único e construíram a imagem do governo mais corrupto da História do Brasil." Descontadas as inverdades óbvias, Chaui está dizendo que corrupção é destino e que nos resta escolher entre a corrupção viciosa dos outros e a corrupção virtuosa dos seus.

O círculo se fecha e uma coerência se refaz. A virtude é uma imanência do PT e de Lula: reflete as essências do partido e de "seu presidente operário", que não podem ser contaminadas pelas suas ações. Os virtuosos estavam certos quando, com ou sem evidências, denunciavam o vício - pois isso abreviava a chegada da virtude ao poder. Os virtuosos estão certos quando, contra todas as evidências, protegem a corrupção no seu meio e no meio dos aliados - pois disso depende a continuidade da união entre a virtude e o poder.

Na operação de cabala de votos, Mercadante não disse aos colegas que o homem das vacas quentes e das notas geladas é inocente, mas que sua cassação correspondia a um interesse da oposição e a uma tentativa de desestabilizar o governo. A sua razão instrumental não tem limites. É que, na nova ordem da filosofia, poder é virtude.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br.