Título: Crimes de R$50 bilhões
Autor: Almeida, Cássia e Batista, Henrique Gomes
Fonte: O Globo, 23/09/2007, Economia, p. 33

Escândalos financeiros aumentaram na última década, mas condenados não são presos.

Os escândalos financeiros no Brasil nos últimos anos provocaram perdas aos cofres públicos e à sociedade de pelo menos R$50,9 bilhões, com base nas sentenças judiciais e em informações do Ministério Público (MP). Alguns crimes datam de 1983, mas os casos se tornaram mais presentes nas páginas policiais dos jornais brasileiros depois do Plano Real, com a estabilização da economia, na década de 1990. Com a possível extradição de Salvatore Cacciola, preso em Mônaco, a lembrança de crimes financeiros volta à tona. E, por um levantamento em nove dos mais emblemáticos casos - Coroa-Brastel, Nacional, Econômico, Bamerindus, Marka e FonteCindam, Precatórios, Papatudo e Banco Santos -, chega-se a uma conclusão assustadora: além de bilhões de dinheiro público usados para sanar as fraudes, nenhuma prisão aconteceu depois da condenação. A exceção é Cacciola, mas não pela condenação, e sim por ter fugido do país.

De 1996 a 2006, o Banco Central (BC) enviou ao MP 13.627 comunicações de indícios graves de irregularidades nessa área. Isso corresponde a uma média diária de 3,8 casos na última década. Não surpreende, portanto, que, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existam hoje cerca de sete mil pessoas processadas por lavagem de dinheiro na Justiça Federal.

Para desembargador, vítima é a sociedade

Outro órgão de inteligência e monitoramento, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda, fez neste ano, até agosto, 858 comunicações ao MP e à Polícia Federal de indícios de irregularidades em operações financeiras, seguradoras, bolsa de valores, fundos de pensão, loterias e mercado imobiliário. São 3,6 por dia. As comunicações do Coaf de 2007 colocam sob suspeita 13.099 operações, realizadas por 5.684 pessoas.

Entre os nove casos emblemáticos de crimes financeiros no Brasil, o mais antigo é o Coroa-Brastel: US$650 milhões em notas de câmbio frias foram espalhados no mercado em 1983. Assis Paim Cunha, dono do grupo, foi preso, processado e perdeu as empresas. A maior fraude, porém, aconteceu no Nacional. Na sentença que confirmou a condenação de seis dos 12 condenados em primeira instância, o valor chama a atenção: um rombo de US$15 bilhões, ou R$28 bilhões pela cotação da última sexta-feira, com a contabilização de lucros falsos, distribuição de dividendos e captação. A fraude do Nacional foi descoberta em 1995. No entanto, 12 anos depois, ninguém está preso. Todos aguardam o julgamento em liberdade, e o presidente do banco na época, Marcos Magalhães Pinto, ainda não teve sequer o recurso em segunda instância julgado pelo Tribunal Regional Federal da Segunda Região (TRF 2).

- Há uma tese em Direito em que os crimes de colarinho branco não devem ser punidos com prisão. A pena mais eficaz seria financeira. Mas, me digam como encontrar o dinheiro enviado para paraísos fiscais? - pergunta o procurador regional Artur Gueiros, que atuou nos casos Marka/FonteCindam, Nacional e Papatudo.

O desembargador Abel Gomes, da Primeira Turma Especializada do TRF 2, com uma experiência acumulada na área penal de 13 anos, é totalmente contrário a essa tese.

- Nada é mais elitista, discriminatório e retrógrado que essa idéia. Mesmo o bloqueio de bens não é uma medida totalmente eficaz. É difícil administrar esses bens e eles se deterioram. Até imóveis viram pó. Os donos deixam de pagar condomínio e IPTU, e quando finalmente vai a leilão, a dívida já comeu o preço do imóvel.

Para o desembargador, o grande problema nos crimes de colarinho branco está em não haver uma vítima que possa ser identificada.

- A vítima é a sociedade brasileira, porque o dinheiro para cobrir os rombos é público.

Mas os avanços são inegáveis, tanto na opinião do procurador como na do desembargador. Há algumas décadas, era impensável um banqueiro foragido:

- Conseguíamos, no máximo, que eles sentassem no banco das testemunhas. Mas há muito a fazer ainda - lembra Gueiros.

Gomes cita avanços: a lei da interceptação telefônica, o aumento das brechas para quebra de sigilo bancário, delação premiada e maior especialização na Polícia Federal e no Ministério Público. Mas, perguntado se acredita que os réus em todos esses processos serão presos, o desembargador declarou:

- Prefiro não responder.

Se for transferido de Mônaco ao Brasil, Cacciola dificilmente terá colegas de crime com quem dividir a cela. Apesar de o país estar vivendo um momento de ampliação dos instrumentos que facilitam a identificação e a produção de provas desses crimes, poucos são, efetivamente, julgados.

- Começamos a ter condenações em primeira e segunda instâncias, mas não nas cortes superiores. O Judiciário é muito moroso. Os juízes só entendem de crimes tradicionais, que deixam um corpo ou muitas provas - afirmou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, autoridade no assunto.

Uma operação do MP, a Força-Tarefa CC5, criada após os escândalos de envio de dinheiro ao exterior pelo Banestado, chegou a números impressionantes: desde 2003, são R$333,5 milhões em bloqueios aqui e R$34,6 milhões no exterior, em mais de 1.170 contas investigadas.

- Poderemos aumentar nossa atuação, há um projeto de lei que nos permitirá analisar transações de gado, assessoria profissional, cartórios e venda de jogadores de futebol - afirmou Paulo Márcio Neves Rodrigues, secretário-executivo do Coaf, destacando que o órgão pediu o bloqueio de R$51 milhões entre 2003 e 2006.

Procurador: incentivo à delação premiada

Apesar dos avanços dos órgãos de controle e do MP, para Bruno Accioly, procurador que atuou no caso Marka, o Brasil ainda engatinha em alguns pontos referentes à Justiça. Ele acredita que o país precisa criar o crime de perjúrio, o que facilitaria as condenações, além de evoluir na cooperação com os réus:

- Nos EUA, uma pena pode ser reduzida de dez anos para dez meses, e isso tem que ser levado a sério no Brasil.

Accioly e o ministro Dipp creditam o excesso de recursos à ditadura.

- Tentou-se, ao máximo, evitar abusos contra as pessoas, criando muitas oportunidades para que fiquem livres. Fomos do oito ao 80 - disse Accioly.

Vladimir Aras, procurador da República da Bahia que atuou na força-tarefa CC-5, acredita que o Brasil precisa regulamentar práticas como a delação premiada e a infiltração policial, além de alterar as regras de prescrição criminal e o excesso de formalismo dos tribunais.

Dipp diz que há evolução e cita a criação das varas especializadas em lavagem de dinheiro nas capitais. Otimista, Maria Rosa Guimarães Loula, diretora do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, destaca que o órgão vem treinando pessoal:

- Esse enfrentamento é novo em todo o mundo.