Título: Consumidor emergente
Autor: Almeida, Cássia e Ribeiro, Fabiana
Fonte: O Globo, 26/09/2007, Economia, p. 25

Acesso a bens faz crescer segmentos B e C, mas idéia de nova classe média é questionada.

Movida principalmente pela expansão do crédito e da renda, uma massa de consumidores está invadindo supermercados e lojas de eletrodomésticos. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/2006), divulgada pelo IBGE no último dia 14, mostrou que a pobreza foi reduzida ao menor patamar em 13 anos no ano passado. Cerca de seis milhões de pessoas ascenderam na pirâmide de consumo. Ávidos por comprar e mais exigentes: é assim que os institutos de pesquisas vêem esses emergentes. Para o governo, eles já integram uma "nova classe média", mas os especialistas alertam que, para se consolidar, o fenômeno precisa de crescimento continuado e reformas econômicas. Além disso, há riscos de o endividamento em excesso anular essas conquistas, no caso de uma crise financeira.

Para a socióloga Elisabete Dória Bilac, do Núcleo de Estudos Populacionais da Unicamp, mobilidade social é mais do que isso:

- Mobilidade social significa mudança de inserção no sistema produtivo. Exemplo: o pai é pedreiro, e o filho, engenheiro. Dizer que só porque saiu da pobreza entrou na classe média é muito otimismo. É preciso estudar melhor esse fenômeno.

Na avaliação do professor da USP e diretor-presidente do Instituto Fractal, Celso Grisi, essa geração de emergentes corre o risco de retroceder. Para ele, a ameaça não vem necessariamente da economia brasileira, mas de um consumismo fora do controle.

- Essa classe média não é previdente, não faz poupança, não pensa em investir em fundos e faz pouco uso do crédito para ter patrimônio - disse Grisi, para quem o ritmo de reajustes de salários pode avançar com menos intensidade a longo prazo.

País vive terceira onda de ascensão social

Para o chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), o economista Marcelo Neri, não é só a renda que indica o aumento da classe média brasileira. Para ele, dados como emprego com carteira assinada (18% este ano) e explosão do ensino universitário são valores tipicamente desse segmento:

- Falamos muito de elite emergente, os novos ricos, mas aqui falamos de ex-pobres emergentes.

São consumidores como Edson Mackeenzy, que viu sua renda dobrar de um ano e meio para cá. Dono da Videolog, espécie de YouTube brasileiro, Mackeenzy acredita que sua empresa cresceu com a popularização dos computadores e do acesso à internet:

- Sou filho de migrantes nordestinos, com pai semi-analfabeto e mãe só com segundo grau. Minha ascensão financeira permitiu que eu mudasse de Bangu para Jacarepaguá, e depois para a Glória. E ainda comprar laptop, carro financiado, viajar mais e ir mais a médico.

A Target Marketing e a LatinPanel, instituto de pesquisa ligado ao Ibope, voltados para área de consumo, constataram essa movimentação de classes. Além da renda, posse de bens duráveis, empregada mensalista e escolaridade são levados em conta na classificação desses institutos.

Para Marcos Pazzini, diretor da Target, houve três ondas recentes de ascensão social no país. A primeira ocorreu no Plano Real. A estabilidade da moeda trouxe renda e consumo de bens duráveis, como geladeira e televisão. Os mais pobres, os da chamada classe E, subiram para a D. Esse movimento continuou: a classe C começou a inchar com a segunda onda, no início da década de 2000. A última onda, de 2005 a 2007, está levando os consumidores para a classe B.

Nas pesquisas da Target, a classe E quase sumiu de 2002 para cá. Eram 12,72% dos lares em 2002. Em 2007, limita-se a 2,31%. E a classe B2 engordou em 588 mil domicílios. Na classe C, entraram mais de 1,5 milhão de lares este ano. Já a classe D perdeu dois milhões de famílias.

- Agora está difícil encontrar famílias com esse perfil baixo de renda. É difícil ver uma casa sem televisão - explica Pazzini.

Para Grisi, da USP, esses novos emergentes não trazem os padrões culturais típicos da classe média brasileira, como valorização de educação, patrimônio e poupança:

- Em vez disso, ela é mais consumista, busca eletrodomésticos sofisticados e quer carro zero. O que se vê, na verdade, é um espelhamento cultural: o emergente vai consumir para adquirir os padrões culturais do grupo de que passou a fazer parte. Um comportamento diferente do que se viu com a melhoria de renda graças ao Plano Real, quando o avanço da classe média tinha menos apelo da publicidade para o consumismo. Com o Plano Real, a população estava mais em busca de valores como educação, saúde, habitação. O que se quer agora é ter para ser.

De olho nesse novo consumidor que está ganhando mais - a Pnad captou ganho real nos salários de 7,2% em média e de 9,6% para os mais pobres - a indústria e o varejo se organizam para atendê-lo. Na percepção de Pazzini, da Target, esse consumidor não quer o genérico dos produtos lançados para a classe A:

- Uma família que compra uma TV de 29 polegadas quer um sinal melhor, por isso, compra uma TV por assinatura. E, logo em seguida, quer um DVD. Ainda busca o menor preço, mas não abre mão de avanços tecnológicos.

A Nestlé e a Unilever, que atuam no mercado de alimentos e de higiene e limpeza, resolveram investir no Nordeste, que exibe as maiores taxas de crescimento da renda (12,2% em 2006). Há dois anos, a Nestlé criou uma diretoria regional em Recife (PE). O tradicional Nescafé foi rebatizado Dolca, o leite Ninho em pó virou Ideal e a lata de 454 gramas foi trocada por um saquinho de 200 gramas. Já a Unilever criou a marca de sabão em pó Ala. Com participação de 24,5% do mercado local, o Ala é hoje a segunda marca mais consumida na região.

- Nosso maior desafio é entender melhor esse novo consumidor - afirmou o diretor da Nestlé, Johnny Wei, que estuda agora levar o projeto de regionalização para o Sul do país.

Varejo se sofistica para os novos clientes

O aumento da oferta de crédito está levando o mercado imobiliário a voltar os olhos para a classe média. Até 2005, as incorporadoras estavam limitadas ao público com renda acima de R$10 mil mensais. Mas medidas como a alienação fiduciária estimularam a criação de novas linhas de financiamento, que hoje podem ir a 25 anos (BB, Bradesco, Itaú e Real) ou até 30 anos (CEF).

- Se, há cinco anos, o financiamento médio era de R$150 mil, hoje é de R$65 mil - disse o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo, João Claudio Robusti.

O supermercado popular Mundial passou a vender produtos mais sofisticados, como os azeites aromatizados criados pelo chef catalão Ferran Adrià, da Azeites Borges. A Chifon, rede de lojas femininas, também acompanhou a alta de renda de seu cliente e, com isso, triplicou o tamanho de sua fábrica, melhorou a qualidade de suas peças e investiu em tendências.

- Essa nova classe média não busca só carro e computador. Roupa também. Até porque tem vida social mais intensa. Para isso, os tecidos e o estilo melhoraram. Houve uma subida de preço. Nada que tenha desestimulado esse consumidor - disse Sérgio Levi, sócio da Chifon.