Título: Não sou Brasil
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 29/09/2007, Opinião, p. 7

Nos últimos meses, tenho aproveitado meu tempo livre para andar pelo país, levando uma campanha chamada Educação Já. Como no tempo das Diretas Já, que mobilizaram o Brasil pelo fim do regime militar, defendo que é hora de despertar o povo para a necessidade de uma revolução no país, por meio da educação. Fazer com que cada criança tenha a mesma chance na vida, com garantia de escola com a mesma qualidade, não importa a renda da sua família ou o tamanho da cidade onde more.

Na última semana, visitei a Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, fundada e dirigida pelo reitor José Vicente. Essa universidade tem a maioria dos alunos negros, como se houvesse uma cota para brancos. Tem boas instalações, oferece cursos de qualidade. A primeira impressão quando entramos, e vemos dezenas de jovens negros, é de que não estamos no Brasil, mas sim na África. No entanto, aquela é a cara do Brasil. Deveríamos estranhar encontrar o contrário - apenas brancos nos bancos universitários.

Esse estranho estranhamento explica por que um estudante jovem, ao final da palestra, pediu a palavra e desabafou: "Eu não sou Brasil", declarou. "Vocês são um Brasil, eu sou outro. Não sou o Brasil dos ricos, dos brancos, do Senado, da Câmara, do governo, da Justiça. Não sou esse Brasil que me ignora. Fiz muito esforço para chegar à universidade. Vou conseguir um diploma, mas de que ele vai adiantar, se eu não tiver emprego? E eu não terei um. Porque eu não sou Brasil."

Quando um jovem afirma que não é Brasil, está fazendo uma declaração muito grave. O que ele quer dizer é: "Vocês são Brasil; eu não. Não sou esse Brasil que está nos jornais; nas TVs oficiais, nas campanhas publicitárias do Poder Executivo ou na impunidade alimentada pela Justiça."

Mas se ele não assumir sua nacionalidade, não terá futuro. Mesmo que fique rico e tranqüilo, será ameaçado, assaltado, seqüestrado. Mesmo que consiga seu diploma, o Brasil não será seu, se ele viver cercado de analfabetos, miseráveis, excluídos. Ou o Brasil é bom para todos, ou não será bom para ninguém.

Aquele jovem precisa entender que é Brasil, mesmo que não queira. Ainda que decida partir, emigrar, aonde for, será Brasil. Por isso, pedi-lhe que não desistisse da luta, que ajudasse a mudar o Brasil. Porque, se ele não o fizer, não terá futuro sozinho.

Mas seu desabafo deve servir de alerta para todos nós, governantes. Aquele jovem pode não retratar o país em sua totalidade, mas representa uma parcela significativa da população, que não se sente parte do Brasil oficial - o país do governo, do Congresso, do Judiciário. Que não vê relação entre o que se diz e se faz no Brasil oficial e no Brasil de cada um, nem vê em nós a solução para seus problemas. Como se, dividido por individualismo, corporativismo, oficialismo, povo e Estado, o Brasil transmitisse aos jovens a idéia de que eles não são brasileiros. E essa divisão nos destruirá.

Espero que o grito daquele jovem nos desperte para a necessidade de mudar a maneira como nós, governantes, pensamos, falamos, agimos. Ou despertamos, ou não haverá futuro. Precisamos ouvir as pessoas que estão lá fora. Indignadas, descontentes, frustradas e, acima de tudo, perdidas. Não confiam no país, não conhecem seus líderes, ou pior, não têm líderes.

O Brasil está empacado. Pode crescer na economia, no número de universitários, mas não será uma nação civilizada, se não acabarmos com o fosso que nos separa. Aquele jovem não estaria na universidade se não fosse a evolução por que passou o Brasil nos últimos anos. Mas estar na universidade não basta, porque o que ele aprende ali não lhe dará o emprego que ele gostaria de ter; e se der, não dará a outros. E mesmo que dê emprego a todos os universitários, não resolverá os problemas fundamentais da sociedade brasileira. Não bastará para construir nosso futuro.

Não haverá futuro para nenhum de nós, enquanto um jovem nos olhar nos olhos e nos disser que ele não é Brasil.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).