Título: A violência em debate
Autor:
Fonte: O Globo, 29/09/2007, Rio, p. 21

TROPA DE ELITE

Exibição do filme "Tropa de Elite" aprofunda discussão sobre drogas, tortura e corrupção.

A polêmica em torno do filme "Tropa de Elite" saiu da tela no "Encontros O GLOBO", num debate que reuniu no auditório do jornal, na noite de quarta-feira, o diretor do longa-metragem, José Padilha; o comandante-geral da PM, coronel Ubiratan Ângelo; e os sociólogos Michel Misse e Luiz Eduardo Soares. Num acalorado debate, mediado pelo jornalista do GLOBO Paulo Motta, o público, formado por 400 pessoas, e debatedores falaram de corrupção, violência policial e descriminação das drogas. Para Ubiratan, a corrupção policial mostrada no filme é resultado de três fenômenos que a sociedade aceita: jogo do bicho, prostituição e uso de drogas. Em outro momento, ele disse que a sociedade decidiu, ao longo da história, que a polícia seria violenta.

As cenas de tortura e execuções mostradas no filme revoltaram parte da platéia, que questionou diretamente o comandante da PM. Com a ausência do comandante do Bope, tenente-coronel Pinheiro Neto, que não compareceu ao evento, o coronel Ubiratan Ângelo ficou no meio do fogo cruzado.

Luiz Eduardo Soares

Co-autor do livro "Elite da Tropa", o sociólogo Luiz Eduardo Soares classificou o filme como uma obra de arte, que revela o retrato de uma época na PM. Para ele, no entanto, a polícia está passando por transformações positivas.

"O nosso livro foi escrito com um propósito: procuramos mostrar que os policiais, mesmo aqueles mais violentos, eram vítimas de um processo de socialização institucional e política que os conduzia a se converterem em algozes. Eles, claro, têm suas responsabilidades individuais quando perpetram brutalidades ilegais, mas eles são fruto de um processo político e de um processo institucionalizado que se reproduz. Comportamento, entretanto, que não está sujeito ao comando dos policiais que, em determinado momento, são responsáveis pela gestão. Nós estamos falando de números muito elevados: 4.329 pessoas morreram em ações policiais nos últimos quatro anos. Não foram vítimas de confronto, foram executadas."

Michel Misse

Sociólogo e diretor do Núcleo de Segurança do Ifcs/UFRJ, Michel Misse, estuda há quase 30 anos a criminalidade no Rio. Ele lembra que a cidade convive com a violência policial desde a década de 50, quando foi criado o esquadrão da morte.

"O filme pega bem de forma apropriada a complexidade da questão e não cai em nenhum tipo de maniqueísmo, não é moralista, não é panfletário. O filme choca pela violência. O fato de expor, pela primeira vez, de forma tão clara a corrupção no meio policial é importante. O ponto forte do debate é quando se diz que é necessário fazer uso da violência para combater a violência e se esquece que há dois tipos de violência. A autorizada pela sociedade, que é legal, legítima, necessária e definida pela sociedade. E outra que é ilegal, ilegítima e inaceitável. Se você igualar as duas, perde referenciais e não podem mais distinguir a polícia dos bandidos. Eu acho que o filme mostra muito bem a complexidade desse fato."

Ubiratan Ângelo

"A polícia é uma pequena amostra da sociedade"

O comandante-geral da Polícia Militar, coronel Ubiratan Ângelo, assistiu ao filme pela primeira vez no "Encontros O GLOBO". Para ele, a violência policial é resultado de um processo em que a sociedade tem parcela de responsabilidade:

"(...) O filme trabalha com o universo da corrupção policial voltada para alguns fenômenos que a sociedade aprova: jogo do bicho, prostituição e uso de drogas. Basta a gente imaginar que a sociedade poderia acabar com o jogo do bicho, com a prostituição e com o uso de drogas. Inexiste corrupção sem a participação do servidor público e da sociedade (...). Não posso dizer que a polícia foi injustiçada, porque não há acusação no filme. É uma obra de ficção (...), e a gente não discute se gostou ou não, mas as causas e as conseqüências. Faço questão de frisar que não existem duas PMs. Essa é uma PM só, e isso é uma preocupação que tenho manifestado dentro da corporação. Não existe no mundo qualquer blindagem que permita estarmos isentos de corrupção, antes de ser do Bope ou quando sai do Bope (...). A polícia é uma pequena amostra da sociedade. Na medida que uma criança e um adolescente de comunidade carente, onde a policia é acusada de violência, aderem a comportamentos e vocabulários do filme, eles estão mostrando toda uma questão de sedução que está no filme. Quando a gente fala da questão moral, a nossa sociedade já decidiu, e eu espero que mude, que a polícia tem que ser violenta. Não fosse assim, nós não temeríamos as conseqüências."

José Padilha

"Parte da crítica taxou o filme de radical de direita"

O cineasta José Padilha disse estar surpreso com a reação dos espectadores do "Tropa de Elite". Para ele, o filme foi mal compreendido por algumas pessoas:

"Fiz dois filmes sobre violência urbana. No primeiro, um documentário do 174, o segundo, o tropa, uma ficção. No 174, eu vi imagens de um sequestrador, o Sandro, brutalizando e torturando pessoas dentro de um ônibus. Depois o vi sendo assassinado e os policiais, absolvidos. No dia seguinte, ele era caracterizado como um monstro nos jornais. Então decidi fazer um filme do ponto de vista do seqüestrador. (...) Uma parte disse que eu havia tentado justificar os atos bárbaros praticados por Sandro. Bom, no "Tropa de Elite", tentei mostrar o ponto de vista de um policial do Bope. (...) Como o policial vê o crime, por que tortura, por que assassina. Para meu espanto, parte da crítica taxou o filme de radical de direita. Intencionalmente os dois personagens têm o mesmo nome: Sandro Nascimento e capitão Roberto Nascimento. A gente joga um jogo que gera pessoas como Sandro ou Nascimento. (...) Assim me tornei um personagem politicamente inviável: porque me acham um radical de esquerda e de direita. Quando você começa a receber email com a suástica é para pensar. (...) Nunca tentei justificar o comportamento de Sandro ou do capitão Nascimento. Tentei mostrar as regras da sociedade que moldam comportamentos como o de Sandro e o do capitão".