Título: Suprema democracia
Autor: Lorenzoni, Onyx
Fonte: O Globo, 02/10/2007, Opinião, p. 7

Na Roma antiga, "ius" significava tanto lei quanto direito. Não foi por acaso que dela nasceu a palavra justiça. Noberto Bobbio ensina que o conceito de Justiça está estreitamente ligado não apenas ao conceito de bem, mas ainda ao de direito, no sentido de direito legal e moral. E, quando o legal e o moral prevalecem, a ética vence.

O Supremo Tribunal Federal reafirmou isso ao aceitar a denúncia do procurador-geral da República contra os 40 acusados de envolvimento com o mensalão. Para entender a importância histórica do caminho escolhido pela nossa Suprema Corte é preciso lembrar de Montesquieu e do papel do Judiciário no equilíbrio das relações entre os três poderes da República.

Diante de uma Câmara que, numa circunstância de fraqueza, não puniu com rigor a maioria dos envolvidos, o Judiciário fez prevalecer a lei, o direito, a moral e a ética. Mostrou que a justiça não é feita apenas com sentenças, mas, sobretudo, com gestos sintonizados com os valores, os pilares da sociedade. Esta independência de ação é a essência de uma democracia baseada no que os federalistas americanos definiram como check and balance, ou harmonia entre os três poderes da República. Ou, ainda, como ensinou Montesquieu: "Não há poder que contrarie o poder. A prevalência do interesse público modera o poder e impede a anarquia e o despotismo."

Um mês depois da decisão histórica sobre o mensalão, o Supremo está prestes a se manifestar sobre outro assunto que envolve o direito, a moral, a ética e o interesse público. Trata-se de manter, ou não, a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que os mandatos eletivos pertencem aos partidos, e não ao eleito. O entendimento do TSE é justo. Ao valorizar a fidelidade partidária, dá um basta na anarquia do toma-lá-dá-cá e mantém a coerência das regras da eleição proporcional, as quais estabelecem que o voto dado a um candidato é, antes de tudo, um voto dado ao seu partido político.

Discordo de quem, como o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, acredita ser indevida a decisão do TSE, provocada por uma consulta dos Democratas. A Câmara não conseguiu fazer andar a reforma política e passa por um momento de total falta de sintonia com a população que deveria representar. Prova disso é a recente pesquisa CNI-Ibope pela qual apenas 11 por cento dos brasileiros confiam nos políticos.

A interpretação do TSE é justa e oportuna. Ocupa o vazio deixado pelo Poder Legislativo. É assim que funciona a democracia: quando um poder fica fraco, sem capacidade de resposta, o outro poder age para fazer prevalecer o interesse público e impedir a anarquia. Da mesma forma, quando o Judiciário se arvora em legislar, o parlamento age e coloca as coisas no seu devido lugar.

A decisão do Supremo Tribunal Federal será proferida mediante a transparência do voto aberto, transmitido ao vivo para todo o país, sem conchavos, conluios e outras impropriedades que poluíram decisões recentes do Legislativo. Os onze ministros da suprema corte poderão encerrar 2007 com chave de ouro, caso confirmem a decisão do TSE e a transformem em norma jurídica.

Estes onze homens e mulheres têm nas mãos a grande chance de iniciar a reforma do nosso sistema político dando um basta no troca-troca partidário, filho dileto da corrupção e do tráfico de influência. Afinal, o mensalão e a compra de votos só foram possíveis porque a fidelidade partidária foi jogada no lixo.

Mais uma vez, caberá ao Supremo Tribunal Federal o papel de fazer valer aquela Justiça definida por Platão como sendo o bem mais precioso que a riqueza mais preciosa.

ONYX LORENZONI é líder do partido Democratas na Câmara dos Deputados.