Título: Verdades e mentiras
Autor: Horta, Luiz Paulo
Fonte: O Globo, 05/10/2007, Opinião, p. 7

Buenos Aires continua linda - o que existe de mais parecido com Paris em todo o continente americano. Lugares especiais como a Recoleta brilham a uma luz suave nesta passagem do inverno para a primavera. Pobreza quase não se vê. Mas um olhar mais atento descobre, aqui e ali, fisionomias cansadas. São restos da crise terrível que fechou o ano de 2001. E, talvez, apreensão pelo que está para vir.

Os argentinos são peritos em manter as aparências. E o presidente Kirchner é um homem de sorte. Elegeu-se em 2003 quando o rápido mandato de Eduardo Duhalde já submetera o país a um duro ajuste. A partir daí, funcionou o boom que beneficiou os países emergentes - sobretudo os que tinham commodities para vender à China. E a economia argentina pareceu, realmente, sair do buraco.

O gigantesco calote aplicado nos credores externos liberou recursos antes inexistentes. À medida que se acumulavam números expressivos de crescimento, houve quem dissesse que Kirchner estava apontando o caminho para os países espoliados, e tomando distância do detestado neoliberalismo.

Mas, na Argentina de hoje, o clima já não é ameno; e, se há poucas dúvidas de que Kirchner será substituído por sua mulher, também não há dúvidas de que Cristina vai precisar de mais sorte que a de seu marido para não desembarcar, com o país, numa crise de vastas proporções.

Kirchner é um manipulador de expectativas. Ultrapassado o período inevitavelmente sombrio de Eduardo Duhalde, ele soube criar a ilusão do crescimento rápido, depois que seu ministro Lavagna (que ele, em seguida, demitiu) conduziu uma negociação parcial com os credores externos. Também se beneficiou da paixão dos argentinos pelo "homem forte", pelo salvador da pátria. Mas a conta da festa está chegando.

O crescimento argentino, mais que um crescimento de fato, é a recuperação de uma parte do terreno perdido. Como se pode crescer realmente se não há investimento externo?

Mas a desconfiança dos credores não é o pior. Grave, mesmo, é a desconfiança dos próprios argentinos. Kirchner mantém com a verdade a relação mais arbitrária. Gosta de que os fatos se dobrem à sua vontade. Já era assim quando governou a província de Santa Fé. A chegada a Buenos Aires acirrou essa tendência.

Os cidadãos de Buenos Aires, por exemplo, acostumaram-se a pagar por gás e eletricidade uma fração do que pagam seus vizinhos de continente. Com isso, o presidente comprou uma crise de energia que deve estourar no provável mandato da sra. Kirchner. Comprou briga com a Shell, por causa de combustíveis. Fez tudo o que pôde para pressionar o Judiciário, o Legislativo (poderes que, na Argentina, vivem à sombra do Executivo), e trata a imprensa aos pontapés.

Para o homem comum, seriam extravagâncias de um "homem forte" empenhado em resgatar o orgulho nacional. Mas, agora, a fantasia começa a se rasgar, porque os fatos já não se encaixam no discurso oficial.

O governo interferiu no próprio organismo (o correspondente a um IBGE argentino) responsável pela preparação de estatísticas. Tratava-se de manter a ficção de uma inflação baixa, num momento em que análises independentes apontam para um índice que pode superar os 20% em 2007 (número desastroso para um país que sofreu mais que o Brasil com a hiperinflação). Nestes últimos dias, a responsável pelas estatísticas da província de Mendoza apresentou um índice de inflação que era o dobro do calculado pelo Indec (o IBGE argentino). Em Buenos Aires, essas notícias são mais controladas. Quando apareceu, em todos os jornais, o índice da província, a consternação foi geral, e aprofundou-se o descrédito no que diz o governo.

Nada disso parece suficiente para interromper a marcha batida da sra. Kirchner em direção à presidência. O mito do "homem forte" ainda funciona - e a verdade é que, neste momento, não há oposição organizada ou consistente na Argentina (soa familiar?).

Mas a um brasileiro de passagem pelas ruas largas e imponentes de Buenos Aires é irresistível a sensação do déjà vu. A Argentina de hoje lembra um Brasil que, em vários pontos, deixamos para trás.

Por que deixamos? Porque, num determinado momento, o Plano Real significou um encontro sempre adiado com alguns dados fundamentais da economia. O PT disse que aquilo tudo era ficção. Mas a prática do presidente Lula foi melhor do que a teoria; e as linhas mestras do Plano Real foram mantidas. É o que responde pelo lado mais moderno da economia brasileira.

O lado social da presidência Lula também conversa com a modernidade. Não há vida civilizada se não se enfrenta o desafio da miséria.

Mais antiga - bem mais antiga - é a tendência do nosso presidente de dizer que tudo começou com ele. Além de não ser verdade, isso nos remete à Argentina de Kirchner e Perón - supostos homens fortes de um país que foi muito rico, e que jogou fora as suas riquezas ao cair no conto da retórica política e do magnetismo pessoal.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.