Título: Vidas perdidas na estrada
Autor: Franco, Beranrdo Mello e Menezes, Maiá
Fonte: O Globo, 07/10/2007, O País, p. 3

"É a patologia do século 21. Infelizmente, brasileiros são permissivos com essa tragédia social".

Fim de tarde de domingo, trecho da BR-487 perto de Campo Mourão, a 477 km de Curitiba, no Oeste do Paraná. Um Escort vermelho faz o retorno no trevo de acesso à cidade de Luiziana. Altair Nunes, de 48 anos, está ao volante, voltando com a família de um almoço na casa de parentes. Ele finaliza o retorno para tomar a BR-487, mas não vê a caminhonete em alta velocidade. O Escort é atingido em cheio. Quatro dos seus seis ocupantes morrem na hora: Altair, sua mulher, Irani de Medeiros, de 52 anos, e os filhos gêmeos Fábio Rogério Nunes e Sandro Rogério Nunes, de 17 anos. A neta Maria Heloise Brito Nunes, de 1 ano e 4 meses, e o sogro de Altair, Eudócio Manoel de Medeiros, de 79 anos, morreram no hospital, dias depois. O acidente vitimou seis pessoas da mesma família, mais uma dizimada pela tragédia social que se instalou nas estradas brasileiras, tema da série que O GLOBO começa hoje.

Mais de 327 mil mortos em dez anos

A combinação de imprudência ao volante, abandono das estradas e impunidade dos motoristas infratores produziu, nos últimos dez anos, uma estatística macabra nas pistas brasileiras. Do início de 1997 a dezembro passado, 327.469 pessoas morreram em acidentes de trânsito no país, segundo levantamento do GLOBO com base em dados do Ministério da Saúde. O número supera a população inteira de capitais como Vitória e Rio Branco. Atropelamentos e colisões aparecem como causa mortis em 4% dos atestados de óbito - isto é, de cada 25 brasileiros que morrem, um perde a vida no trânsito.

Dados do Ministério da Saúde para 2005 mostram que, a cada dia, 98 pessoas morrem no Brasil em decorrência da violência no trânsito. É como se, a cada dois dias, caísse um avião da TAM (187 mortos a bordo e 12 no prédio da TAM Express).

Pelos números do Datasus, as mortes já estão no mesmo patamar de 1997, ano em que foi lançado o novo Código de Trânsito Brasileiro. Os óbitos no trânsito eram 35.636 em 1997, caíram para 29.434 em 2000 (um efeito do novo Código), mas logo voltaram a subir, chegando a 35.753 em 2005. Só de 2002 a 2005, as mortes cresceram 8%. Dados preliminares de 2006 já somam 33.209 mortes, faltando ainda ocorrências do Norte e do Nordeste.

Na comparação com outros países, a confirmação da calamidade: o Brasil não só tem um alto número de acidentes, como também tem mais ocorrências por quilômetro de estrada. Pior ainda: tem mais mortes por acidente, ou seja, as ocorrências no trânsito são mais letais aqui.

Um estudo da Coppead, Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que, contando apenas mortes registradas em rodovias federais policiadas, a taxa de óbitos por mil quilômetros de estrada é de 106,8 no Brasil. A mesma comparação produz uma taxa de 10,1 mortes na Itália, 10,5 na Alemanha e 6,6 nos Estados Unidos. Nas rodovias americanas, para cada grupo de dez mil acidentes, morrem 65 pessoas; no Brasil, as mortes pulam para 544, considerando apenas rodovias federais policiadas, e 909, em todas as rodovias.

O mesmo estudo indica que a taxa de mortes no trânsito no Brasil era de 19 por cem mil habitantes, em 2004. A taxa é de 15 nos Estados Unidos, 11 na Espanha, 10 da Itália e 5 na Holanda. O Brasil fica em má situação mesmo se comparado aos países sul-americanos: a taxa é de 22 no Uruguai, 21 na Colômbia, 11 na Venezuela, 10 no Equador e 4 no México. Apesar disso, 88% dos custos com as mortes no trânsito ocorrem em países desenvolvidos e 12% em países em desenvolvimento, como o Brasil.

- Acidente lá fora é muito mais caro do que aqui. Eles valorizam muito mais a morte, que aqui é tratada como uma coisa banal - diz o professor Paulo Fleury, um dos coordenadores da pesquisa da Coppead.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) prevê que, até 2020, os acidentes de trânsito se transformem na terceira maior causa de mortes no mundo. José Montal, diretor científico da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, diz que as causas dos acidentes misturam imprudência, condições irregulares das estradas, impunidade para punir os responsáveis e uma cultura de valorização do automóvel:

- A sociedade está vivendo um estado de absoluta sedução pelo automóvel. Toda a propaganda em torno do carro está ligada à competição, à conquista. Não existe propaganda dizendo: "Acelere com moderação". É uma situação semelhante à do cigarro, nos anos 80. É como uma licença para matar.

E acrescenta que as mortes no trânsito já podem ser consideradas como epidemia no Brasil:

- Essa é a patologia do século 21. Mas infelizmente, os brasileiros são permissivos com essa tragédia social. É como se esses mortos não tivessem nome ou sobrenome - diz Montal.

Não para Alda Araújo, coordenadora de Estatística do Detran do Rio de Janeiro. Responsável pela contabilidade trágica, extraída dos registros da Polícia Civil, Alda relembra, em cada número, a morte de seu filho, Lucas Fernandes, estudante de Letras, de 22 anos, atropelado em Niterói há três anos. O motorista passava pela Estrada Francisco da Cruz Nunes em alta velocidade e não prestou socorro ao jovem. Jamais o motorista foi localizado. No mesmo computador onde manipula as planilhas com estatísticas fatais, Alda guarda a foto do filho:

- Não é apenas uma planilha. Esses dados têm nome, têm história. Muitos pais como eu estão sofrendo. Os jovens estão morrendo nas ruas e estradas do Brasil.

"Esses acidentes não são fatalidade"

Os dados do SUS mostram que os jovens são as vítimas diretas dos acidentes de trânsito. Do total de internações relacionadas a acidentes de trânsito de janeiro a julho deste ano, 20.891 foram de jovens de 20 a 29 anos. No mesmo período do ano passado, o número foi de 20.620. No total, as internações relacionadas aos acidentes corresponderam a 15% do total que deu entrada no SUS, em 2006 e nos primeiros meses de 2007.

Especialista na reabilitação de sobreviventes, o diretor da Rede Sarah de hospitais, Aloysio Campos da Paz, considera que o volume de acidentes fatais caracteriza um "genocídio" nas estradas. Entre os jovens de 20 a 39 anos se concentram 45% das mortes.

- Todo ano, o país perde milhares de jovens que deveriam estar no mercado de trabalho, e há um número ainda maior de pessoas com lesões irreversíveis - afirma Campos da Paz.

Pesquisadora do Instituto Claves, ligado à Fiocruz, Kathie Njaine sustenta que grande parte das vidas perdidas no trânsito poderia ter sido poupada:

- Esses acidentes não são fatalidades. São evitáveis.

COLABOROU: Ana Paula de Carvalho