Título: No Brasil, risco de punição a quem descumpre leis do trânsito é ínfimo
Autor: Escóssia, Fernada de e Menezes, Maiá
Fonte: O Globo, 07/10/2007, O País, p. 4

Especialista critica impunidade e diz que imprudência é o que mais mata.

Debruçado sobre os números de acidentes das estradas brasileiras, o professor Paulo Fleury, da Coppead da UFRJ, sustenta que a mistura entre imprudência e impunidade é fatal. Sem controle ou fiscalização, cada vez mais atraídos por carros possantes e submetidos a estradas com erros de engenharia, os motoristas diariamente correm o risco de engrossar a triste estatística de morte no trânsito. "Infelizmente, essa morte diária não choca", diz Fleury.

Qual é a principal razão de tantas mortes relacionadas a acidentes?

PAULO FLEURY: O problema maior é a imprudência do motorista, que também é fruto da falta de fiscalização. As pessoas se sentem totalmente à vontade para andar em alta velocidade, para ultrapassar o sinal vermelho. Os centros urbanos se tornaram torres de babel. Aqui no Rio, as vans tomaram conta das ruas, param em qualquer lugar. Os motoqueiros também. Eles andam em altíssima velocidade.

Por que essa imprudência é tão aguda no Brasil?

FLEURY: É um mal que é conseqüência de uma falta de punição a quem pratica. O crime aqui no Brasil compensa. Há estudos indicando que a criminalidade obedece à lei da oferta e da procura. Se não custa nada praticar o crime e o ganho é alto, o crime será praticado. Como a punição é zero e as pessoas sentem prazer em andar em alta velocidade, os acidentes acontecem. Eu não sei de ninguém que esteja preso no Brasil porque matou alguém em algum acidente.

Em que medida a manutenção das estradas brasileiras tem reflexo nesses dados?

FLEURY: Essa é a grande surpresa. De uma forma equivocada, todo mundo fala que as más condições das estradas são o grande causador de acidente. Essa é a visão do leigo. Em uma via esburacada, você não consegue andar em excesso de velocidade, porque o amortecedor e o pneu não agüentam. Você é obrigado a andar em menor velocidade, é uma barreira.

O Brasil, então, nunca vai poder ter highways?

FLEURY: Elas podem acabar virando uma arma. É a mesma conseqüência de colocar o automóvel na mão de irresponsáveis. As pessoas não estão educadas para isso. Saem matando gente na rua. O mais importante nas estradas é a curvatura. Quanto mais fechada for a curva, maior o risco de tombamento, que é o principal tipo de acidente. Se você tiver uma boa estrada com boa condição de pavimentação e curvas fechadas, sem sinalização, isso é um convite ao acidente. Então o que falta no Brasil? Sinalização.

Os números impactantes de acidentes rodoviários parecem chocar menos do que os aéreos...

FLEURY: A média é que morra nas estradas o equivalente a um avião da TAM a cada dois dias. As pessoas já consideram normal. Se não for concentrado em um avião, em um dia, ninguém estranha mais. Os números estão aí, mas ninguém se sensibiliza com eles. Infelizmente, essa morte diária não choca.

O que mais contribui para os índices, depois da imprudência?

FLEURY: A quantidade de automóvel que entra no mundo a cada ano só aumenta. São Paulo hoje tem um automóvel para cada dois habitantes. E quanto menos desenvolvido o país, menos cuidado eles têm com sinalização, com controle de velocidade. Os carros vão ficando mais velozes, e as pessoas com menos controle. O risco de punição para quem descumpre as leis do trânsito é ínfimo.

O senhor achou que o código de trânsito foi pouco eficiente?

FLEURY: O código nunca foi cumprido. Ninguém soube de alguém que perdeu a carteira por pontuação. Aqui no Rio, o que eles já perdoaram de dívida quatro ou cinco vezes...

Como controlar essa trágica estatística?

FLEURY: Há três momentos do acidente. Antes do acidente, a prevenção: é preciso sinalizar a via. Aí tem o momento do acidente: as conseqüências podem ser menores ou maiores dependendo das condições de segurança do automóvel, como a existência de cintos de segurança, de airbags. A questão é que aqui temos uma frota super-velha, que nem cinto de segurança tem. A quantidade de pessoas que não usa cinto é enorme. A terceira fase é o pós-acidente: as estatísticas mostram que, se o indivíduo for atendido até meia hora depois do momento do acidente, a chance de o indivíduo sobreviver aumenta cinco vezes.

Qual a conclusão a que se chega ao se comparar a situação do Brasil e de outros países do mundo?

FLEURY: No Brasil morre-se 14 vezes mais com o mesmo número de acidentes. Lá tem menos acidente por quilômetro e, quando tem, morre menos gente.

Em que estado do país a situação é pior?

FLEURY: O estado de Minas é o que tem o maior índice de mortes por acidentes. Mais pessoas sobrevivem a acidentes em São Paulo do que em Minas, onde há muitas estradas e mal conservadas, mal sinalizadas. Além disso, não tem uma rede rápida de atendimento.

O senhor é a favor da concessão de estradas?

FLEURY: Não tenho a menor dúvida. Os números falam por si. É só ver a qualidade das estradas. As estradas privatizadas são, de longe, muito melhores do que as públicas. Boas estradas geram maior fluxo, maior receita e permitem fiscalização mais rigorosa.

Qual deveria ser a principal medida para a transformação desses índices??

FLEURY: A primeira coisa é criar um banco de dados sobre acidentes: como ocorreram, quais as conseqüências do acidente, a estimativa de custos. A segunda é começar a divulgar os acidentes, em letreiros, como nas fábricas. Seria muito interessante também fazer um estudo-piloto em um local com muito acidente usando os mecanismos corretos nessas três fases do acidente.

Washington Luís dizia que governar é abrir estradas. As estradas foram abertas, mas não se resolveu o problema da infra-estrutura nem do escoamento de produção...

FLEURY: A questão é que o Brasil, nos últimos 30 anos, perdeu a capacidade de planejar. Além disso, os governos não tratam a estrada como algo que envolve risco. Tem que ter um sistema completo para cuidar disso.

O senhor conhece experiências positivas do controle de mortes no trânsito?

FLEURY: Talvez Curitiba. Brasília tem uma experiência fantástica, as pessoas param nas faixas. Na Inglaterra o sistema de controle é também é excepcional. Ameaçou colocar o pé em uma faixa de pedestre, pára todo mundo. Há pedágios urbanos, em certos locais, quando aumenta a chance de acidente, o carro é detectado e se paga um pedágio diferente, dependendo da hora, para dar um certo equilíbrio e evitar picos. Se atropelar um pedestre na faixa de segurança, é cadeia.