Título: Na BR-101, carros frente a frente e morte na certa
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 07/10/2007, O País, p. 8

Batidas no trecho de pista simples da rodovia no Rio quase sempre acabam em morte. Foram 195 só este ano.

Parece videogame. Por longos segundos, o carro de passeio e o caminhão-baú ficam frente a frente. Eles se aproximam perigosamente. O motorista do carro hesita entre reduzir e desviar para o acostamento, enquanto o outro pisa fundo. A reta é curta e não oferece alternativas. A poucos metros de uma colisão, o caminhão encontra uma brecha e troca de pista, quase ao mesmo tempo em que cruza com o carro de passeio.

A cena, que aconteceu na manhã de quinta-feira passada, em Casimiro de Abreu, se repete a cada minuto nesse trecho da rodovia BR-101. Desta vez, foi por pouco. Dez dias antes, quase no mesmo lugar, dois soldados da PM que viajavam num carro de passeio, em manhã chuvosa, também ficaram frente a frente com um caminhão-baú. O carro deles, um Gol, derrapou na curva e invadiu a pista oposta. Eles não tiveram a mesma sorte. Colidiram de frente e morreram na hora, vítimas de um incêndio no veículo.

BR tem 472 Km de pista simples

Com 472 quilômetros de pista simples (uma faixa para cada sentido), de um total de 543 quilômetros, o trecho da BR-101 no Rio de Janeiro é uma referência nacional em colisões frontais. A maioria das 195 mortes ocorridas só no primeiro semestre deste ano seguiu esse padrão. Para a Polícia Federal, a imprudência dos motoristas envolvidos é a explicação mais cabível para tantos acidentes.

As condições gerais da rodovia, porém, não oferecem muitas opções para uma viagem tranqüila. Com um movimento diário de 55 mil veículos (norte e sul), muitos deles caminhões pesados que operam no pólo petrolífero de Macaé ou no Porto de Sepetiba, a BR-101 não conta com faixas adicionais ou acostamento em pontes e viadutos nos segmentos de pista simples. O traçado é perigoso, com muitas curvas acentuadas, e a sinalização está desgastada.

Mesmo nas retas mais extensas, a ultrapassagem de caminhões longos, lentos e pesados - há muitos deles circulando a cada instante - é sempre uma manobra de risco.

Em fevereiro de 2005, a rodovia acabava de passar por mais um recapeamento (a pista não estava ainda pintada), quando o dentista José Eduardo Sales dos Santos, de 30 anos, partiu de Casimiro de Abreu para Rio das Ostras, onde mostraria para uma sócia, no dia seguinte, o projeto de instalação de um consultório na casa que acabara de alugar na cidade. Poucos quilômetros depois, por razões que a mãe do rapaz desconhece até hoje, o carro de José Eduardo teve o mesmo destino de outros tantos na 101: colidiu com um caminhão.

- Até aquela noite, tudo dava certo para o meu filho. Ele estava muito feliz. Vivia um momento especial, com casamento marcado e montando consultório - lamenta a advogada Gilda Sales dos Santos.

O caminhão vinha do Espírito Santo com uma carga de cocos e bananas. Como a grande maioria dos parentes das vítimas de acidentes nas rodovias brasileiras, Gilda disse que não teve acesso à conclusão das causas do acidente. Ela afirma que não houve perícia. E desconfia que, como a pista recém-pavimentada não estava pintada, os dois motoristas ficaram desorientados. O acidente ocorreu por volta das 23h, pouco depois de chover na estrada.

Gilda não se nega a falar de sua tragédia pessoal - José Eduardo era o mais velho de três filhos. Não quer esquecer. Mantém até hoje o quarto do rapaz intacto.

- Ainda sinto o cheirinho dele no quarto. Mais do que um filho, ele era um grande amigo - suspira.

A extensão mais crítica da BR-101 (vai de Silva Jardim a Campos, divisa do estado com o Espírito Santo) atravessa Casimiro de Abreu, cidade a 128 quilômetros do Rio, que se protege da letalidade da rodovia com uma seqüência de quebra-molas. O prefeito local, Paulo Dames, reclama da quantidade de acidentes nas imediações, que o obriga a gastar muito para manter em funcionamento a emergência do hospital municipal.

- Esta estrada não está preparada para o movimento que tem. E nem o meu hospital para tantos atendimentos. Mais de 80% dos nossos gastos com saúde são pagos pela prefeitura. Mesmo as vítimas com plano de saúde são atendidas aqui. Depois, o helicóptero vem buscar. Mas quem presta os primeiros-socorros somos nós - disse Dames.

As estatísticas da Polícia Rodoviária Federal revelam uma situação paradoxal na BR. A comparação do primeiro semestre deste ano com o mesmo período de 2006 indica queda no número de acidentes. Foram 2.507 nos primeiros seis meses de 2007, contra 2.624 no ano passado. O número de feridos também caiu (1.391 este ano e 1.593 no ano passado). Porém, a quantidade de mortos subiu: de 166, nos primeiros seis meses de 2006, para 195, no primeiro semestre deste ano.

Para os patrulheiros rodoviários, o levantamento mostra que os acidentes se tornaram menos freqüentes e mais mortais. Desde o início do mês, o segmento mais crítico (Silva Jardim-Campos), que era coberto por uma patrulha, ganhou o reforço de outra.

Morte freqüente no choque frontal

Os policiais contam que quase todos os acidentes frontais na rodovia resultam em mortes. Grande parte deles envolve caminhões. Os patrulheiros isentam o veículo. Garantem que, ultimamente, são raros os casos de caminhões circulando em péssimas condições. Preferem culpar os motoristas, principalmente os que conduzem veículos de passeio, por não respeitar a sinalização.

Outro problema grave é o número de atropelamentos. As cidades ao longo da pista passam por um processo de crescimento demográfico, vinculado ao petróleo da Bacia de Campos. Cruzes na beira da pista indicam os pontos mais críticos, onde a população reivindica passarelas.

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) avalia, todo ano, as condições de tráfego das mais importantes rodovias brasileiras. No ano passado, a BR-101, no trecho fluminense, recebeu a classificação de regular no estado geral. Ganhou igual classificação para a sinalização e a geometria. Mas, em pavimentação, chegou a obter um "ótimo".

MP moveu ação contra governo

Há dois anos, o Ministério Público Federal em Campos tentou resolver o problema da rodovia na Justiça. A representação do MPF em Campos entrou com uma ação civil pública para obrigar o governo federal a fazer obras de melhoria na BR para garantir a segurança dos usuários.

- A ação foi fruto de um trabalho de mobilização da comunidade. Chegamos a fazer uma audiência pública em Campos, para a qual convidamos até o presidente Lula - disse o procurador da República Eduardo Santos de Oliveira, um dos autores da ação civil pública.

Na mesma época, o governo federal lançou a Operação Tapa-Buracos e, até hoje, o Ministério Público não sabe dizer se as providências foram tomadas por causa da ação. O fato é que, como o processo não incluiu o pedido de duplicação da BR, a maior reivindicação de seus usuários, a Justiça optou pelo arquivamento depois que as obras emergenciais foram executadas.

Ontem, outra tragédia ocorreu na rodovia, em Tubarão, Santa Catarina. Quatro pessoas morreram em um acidente durante a madrugada, envolvendo duas motos. Elas despencaram de uma altura de cinco metros, em um local onde a ultrapassagem é proibida. A suspeita da polícia é que os pilotos estivessem participando de um pega.