Título: Golpe de R$3,5 bilhões na Saúde
Autor: Romano, Paulo
Fonte: O Globo, 09/10/2007, Opinião, p. 7

A má gestão na rede pública compromete a aplicação dos recursos destinados à saúde. Não há dúvidas. Mas atribuir exclusivamente a esse fator o mau desempenho do país no setor é camuflar a realidade. O fato é que ainda gastamos pouco diante da magnitude dos problemas que enfrentamos. De acordo com o Banco Mundial (Bird), em termos de qualidade dos serviços, o sistema de saúde brasileiro ocupa o distante 128º lugar no mundo, numa lista de 191 países, e o 28º na América Latina e no Caribe, onde 30 nações são pesquisadas.

O Brasil destina hoje cerca de 45% de seus gastos públicos à saúde, contra 75% da Itália, 85,7% do Reino Unido e 86% de Cuba, para citar alguns exemplos. Contudo, enfrenta, no setor, desafios muito maiores que esses países - devido ao déficit em serviços de saúde acumulado ao longo de décadas e também a uma população bem maior.

A questão é de difícil solução, sobretudo se considerarmos as restrições orçamentárias do país, que tem carências de recursos em diferentes frentes igualmente indispensáveis para o seu desenvolvimento, tais como educação, segurança e infra-estrutura.

Por isso mesmo, a criação de mecanismos que garantam a efetiva aplicação dos recursos constitucionalmente vinculados ao setor, sem dissimulação ou maquiagem, emerge como providência inadiável. E neste sentido ganha relevância o Projeto de Lei Complementar (PLP) 01/03, que visa a regulamentar a Emenda 29 da Constituição.

A referida emenda obriga os entes públicos - União, estados e municípios - a destinar entre 10% e 15% de seus gastos à área da saúde. Mas estados e municípios, principalmente, lançam mão de uma série de artifícios e desvirtuam a Emenda, contabilizando como gastos em saúde investimentos em limpeza pública, saneamento, meio ambiente e até previdência de seus servidores. Claro que todos esses investimentos trazem benefícios indiretos, mas não podem de forma alguma ser considerados aportes diretos no setor.

O PLP 01/03, que há quatro anos tramita na Câmara dos Deputados e começou a ser votado em 2 de outubro último, em tese contribuirá para coibir esses desvios e artifícios, na medida em que definirá, com exatidão, quais são as despesas com saúde. Em tese porque, da forma como foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos, do Senado, na semana passada, o projeto derruba o dispositivo que obriga a União a gastar 10% de suas receitas brutas com a saúde. Se o texto passar pelo plenário com esta redação, a saúde deixará de receber R$3,5 bi por ano, algo que a sociedade não pode tolerar.

Válido lembrar que, dos quase 180 milhões de brasileiros, apenas cerca de 38 milhões têm acesso, por meio de planos de saúde, aos serviços da rede privada, que oferece padrão comparável aos de primeiro mundo. O restante depende da rede pública, reconhecidamente muito deficiente.

Assim, enquanto o crescimento da economia não for capaz de permitir o ingresso automático de mais e mais brasileiros no mercado formal de trabalho - e, a partir daí, franquear o acesso aos planos de saúde a uma parcela maior da população, desafogando de vez o SUS -, é preciso fortalecer o sistema público.

O processo passa, necessariamente, pela melhoria da gestão, pelo combate à corrupção e pela melhoria das condições de trabalho dos profissionais das instituições públicas, tarefas da alçada do Executivo. O Legislativo, por sua vez, pode fazer a sua parte, votando e aprovando leis importantes, como o PLP 01/03. Mas, para tanto, é preciso mudar a redação que lhe foi dada na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, garantindo maiores aportes de recursos para o setor. Que a sociedade fique alerta à questão e cobre providências de seus parlamentares.

PAULO ROMANO é médico e diretor da Casa de Saúde Santa Lúcia.