Título: Um desvio para limpar a água
Autor: Brandão, Tulio
Fonte: O Globo, 10/10/2007, Rio, p. 15

Cedae anuncia transposição dos três rios mais contaminados da Bacia do Guandu.

Aágua de beber de dois terços da população do Estado do Rio é captada numa região com saneamento zero. Um diagnóstico ambiental elaborado pela Coppe/UFRJ revelou que apenas 0,6% de todo o esgoto produzido em municípios da Baixada Fluminense e da Região Serrana recebe algum tratamento antes de ser lançado na Bacia do Guandu, onde funciona a estação que abastece cariocas e fluminenses. Diante do colapso ambiental iminente, a Cedae decidiu realizar o projeto de desvio da água dos três afluentes mais contaminados do Guandu - Queimados, Poços e Ipiranga - para depois da zona de captação. A obra, estimada em R$36 milhões, será iniciada no ano que vem e concluída até o fim de 2009.

Segundo o presidente da Cedae, Wagner Victer, o projeto será financiado com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, e fará parte de uma obra maior, que visa à ampliação da captação em mais 12 mil metros cúbicos por segundo - atualmente, a média é de 43 mil metros cúbicos.

- O grande desafio é segregar a captação dos três rios que mais poluem o Guandu. Optamos pela obra por uma questão de custo e prazo: não gasto mais de 24 meses no desvio do Guandu, enquanto o saneamento da Baixada demoraria mais de 20 anos, com um custo altíssimo - disse Victer.

Obra reduzirá custos

O Plano de Bacia do Guandu, feito a partir do diagnóstico ambiental para o Comitê do Guandu - órgão que gere os recursos hídricos de 15 municípios - calcula em R$1,5 bilhão o custo da recuperação ambiental da região.

O superintendente da estação de tratamento de água do Guandu, Edes Fernandes de Oliveira, explica que a obra não é uma solução ambiental:

- O desvio visa a resolver o problema do abastecimento, já que a contaminação dos três rios dificulta o tratamento da água.

As análises químicas mostram que a obra, entre outras economias, vai proporcionar uma redução de 20% nas 140 toneladas diárias de sulfato de alumínio utilizadas para tratar a água, o que significa poupar R$247,8 mil por mês.

- Como os outros produtos químicos utilizados no tratamento só são dosados a partir da água tratada com sulfato de alumínio, não temos como mensurar a economia. Mas é certo que também gastaremos menos flúor, por exemplo. Isso sem falar no ganho operacional e da segurança - completou Edes.

Rio conhecido como valão

Análises da Cedae revelam ainda que, em média, o índice de coliformes fecais no ponto de captação atual da estação é o dobro do encontrado no trecho em que o Rio Guandu não tem a influência dos três rios. Além do esgoto, os rios Queimados e dos Poços recebem os resíduos do Distrito Industrial de Queimados e de outras empresas da região.

Para o químico ambiental da Uerj Friedrich Herms, diretor-geral do Comitê Guandu, a Cedae peca ao não equilibrar tratamento de esgoto e abastecimento de água. O diagnóstico da região mostra que, enquanto menos de 1% do esgoto das casas é tratado, 77,9% delas recebem água encanada (o percentual, nesse caso, está acima da média nacional, que é de 76,1%):

- É um problema histórico. Eles esquecem que casa com água produz esgoto.

O desvio é uma solução para o abastecimento, mas não resolve o problema ambiental. O percentual de esgoto tratado da Bacia do Guandu é 23 vezes menor do que a média brasileira e compara-se ao da Região Norte, dona dos piores níveis de saneamento do país. O diagnóstico mostra ainda que seis dos sete municípios da região têm lixões classificados como "inadequados", lançando chorume sem qualquer tratamento nos rios.

Nos três rios que serão desviados, o nível de oxigênio na água é zero. A carga de esgoto e lixo de todos os municípios daquela região desemboca in natura nos cursos d"água. A prática é tão consagrada que os moradores já nem conhecem mais os rios pelo nome em localidades como Jardim Alzira, em Queimados.

- Esse é o Rio Camorim? Nem sabia. Desde que nasci, há 28 anos, chamo esse rio de valão - disse a babá Ana Flávia de Brito Silva, em frente a um leito completamente tomado por lixo e esgoto, que desemboca no Rio Queimados e, por sua vez, no Guandu. - Não dá para chamar de rio um lugar com esse cheiro, cheio de rato e lixo, por onde passam carcaças de porco, cavalo, boi e outras coisas nojentas.

Para Herms, o cenário atual é grave, mas pode se tornar ainda pior:

- Os três rios mais contaminados não saem da situação crítica nem com uma estação de tratamento de esgoto terciária (a mais completa). Na foz, são lançados, por ano, o equivalente a 120 mil caminhões de areia. E a perspectiva não é boa, com a construção do Arco Rodoviário e a criação do pólo siderúrgico na região. O que assusta é o efeito indireto disso. Onde os novos habitantes vão morar? Onde vão despejar esse esgoto?

Alguns velhos habitantes das margens dos afluentes do Guandu, como o barbeiro Adelino Silva da Graça, de 61 anos, morador de Jardim Alzira, já enxergam o erro da ocupação.

- Moro aqui desde criança, mas acho que a melhor maneira é tirar todo mundo. Quando chove, dá enchente e sempre desmorona alguma casa. E o esgoto e o lixo são insuportáveis. Então, é o caso de o governo remanejar a gente, de arrumar uma alternativa para moradia.

Plano propõe 65 ações

O diagnóstico preparado para o Comitê Guandu serviu de base para o Plano de Bacia, um documento que propõe soluções para a recuperação da região. Herms explicou que foram propostas 65 ações:

- O plano é de combate à ocupação irregular e à falta de saneamento. O projeto está orçado em R$1,5 bilhão. Em cada fase (2010, 2015 e 2025), seriam utilizados R$500 milhões. Desse total, R$1,1 bilhão são para saneamento.

O secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc, pretende usar o Plano de Bacia como uma das bases para o Programa de Despoluição da Baía de Sepetiba. Ele explica, no entanto, que o governo já iniciou o trabalho de recuperação da região. À frente da pasta desde o início do ano, Minc criou a APA Guandu, com 74 mil hectares; iniciou o plantio de um milhão de mudas de mata ciliar; desativou dois areais e um lixão clandestinos; reservou R$80 milhões do orçamento para o saneamento da Baixada até 2008; tenta fechar com reflorestamento o corredor verde formado entre Serra da Bocaina e Reserva do Tinguá; e vai iniciar este ano o desassoreamento da Baía de Sepetiba, onde desemboca o Guandu.

- Sabemos que está ruim e que pode piorar, já que haverá um impacto grande com os novos empreendimentos da região. Mas, diferentemente do histórico da Baixada Fluminense, teremos a oportunidade de crescer com planejamento. Para isso, estamos elaborando uma série de estudos, como o Zoneamento Ecológico Econômico - disse Minc.

O diagnóstico do Comitê revela que as três cidades mais próximas da estação de água da Cedae - Japeri, Queimados e Seropédica - estão em situação crítica. Os municípios reconhecem a deficiência na infra-estrutura, mas lutam contra a falta de verba para viabilizar projetos de pequenas estações. O cenário é resumido pelo secretário de Meio Ambiente de Seropédica, Jorge Luiz Moreira:

- O saneamento na região é bastante ruim. Não adianta apenas enterrar uma manilha sob o asfalto, se ela leva para valões que caem no Rio Guandu. Estamos tentando mudar esse quadro histórico na região.