Título: Nós, os Caveiras
Autor: Duarte, Mário Sérgio de Brito
Fonte: O Globo, 12/10/2007, Opinião, p. 7

Osociólogo Luiz Eduardo Soares e o cineasta José Padilha selaram importante parceria, há poucos dias. Autores respectivamente de ¿Elite da tropa¿ e ¿Tropa de elite¿ ¿ livro e filme ¿, eles formam a mais recente dupla de sucesso nacional na onda de suas criações, as quais, segundo disseram a um jornal paulista, em artigo recente, ¿nasceram e cresceram como obras distintas e autônomas¿, mas com similitudes de essência que culminaram por propiciar-lhes identidade.

Num texto dirigido a segmentos sociais pertencentes aos níveis de ápice, as camadas de estratificação onde se acomodam intelectuais e eruditos, Luiz Eduardo e Padilha fazem crer que se anelaram numa empreitada pedagógica com a mídia, por recurso globo-facilitador, para lançar luz sobre algumas questões fundamentais à visualização da ¿barbárie em nome da civilização¿, que imputam ao Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM carioca, mas que parece não ter ficado muito claro, a considerar pela reação do público, e agora julgam conveniente esclarecer, a fim de não haver dúvidas sobre as intenções pretendidas na ficção e abstrações que um materializou em livro e o outro na sétima arte.

O que parece complicado é muito simples: as obras têm um condimento identitário, o horror, e nossos próceres culturais procuraram reunir forças para exibir suas imprecações aos comportamentos desviantes da razoabilidade imprescindível à natureza humana, consideração que prefeririam até relativizar, mas que por ora julgam previdente não refutar, em defesa dos direitos humanos contra violações e aviltamentos promovidos pelo Bope, como garantem acontecer de forma contumaz, genérica e institucional. Daí as lições de moral no populacho que se deleita na paródia ¿metalingüística¿, presente em suas criações, e que, por não decifrá-la, supõe-nos condescendentes com a vingança, pelas mãos do Bope, contra o inferno produzido pelo exército das drogas, que há anos lhe tira a paz e mina-lhe as esperanças.

Os autores talvez tivessem até crido que isso não seria preciso, afinal tudo ia bem; o filme já é um sucesso estrondoso e o livro vende muito. O que fez com que as renomadas personalidades se adiantassem em explicar essa incursão pela arte mórbida, posando ora de Francis Bacon, e ora de Gilles Deleuze, foi justamente a necessidade de não se permitir acusações de imprevidência ideológica. Aos poucos, vozes aliadas nas cores das idéias que professam e que podemos enxergar no curso de suas produções tornadas públicas emitem opiniões de dissonância sobre o conceito de suas criações; foi assim com o escritor peruano Daniel Alarcón e com o jornalista Arnaldo Bloch.

É disso que precisam se precaver; faturar com a fantasia do horror sim, mas com o cuidado de não parecerem burgueses insensíveis, anestesiados pelo lucro, cuidando, com as explicações em parceria, de livrarem-se de qualquer desconfiança que lhes recaia. É por isso que confundem ficção com fatos: o objetivo é atirar na cara dos soldados do Bope, e da população que aplaude o ¿sapeca iá iá¿ no lumpesinato bestial, a pecha de bárbaros, incivilizados, condescendentes e assassinos.

Nossos intimoratos norteadores de conduta moral, espécies de ¿grilos falantes¿ acima de qualquer suspeita, estão sendo vistos com desconfiança, e já sofrem acusações que variam de ¿reacionarismo à farsa¿. Eles precisam imediatamente desenterrar e destruir qualquer semente de suspeita sobre suas intenções mais secretas e inconfessáveis; essas que não se apresentam no ¿dito¿, mas que são captadas por experimentados estudiosos do psiquismo e criminologistas, mesmo quando dissimuladas (ou simuladas) por falsificações quase perfeitas daquilo que ¿não é¿. Numa tese psicanalítica: ¿o que declaro não querer é justamente a minha intenção¿.

Luiz Eduardo e Padilha gostam de sangue, tortura e horror, mas como manifestação de entretenimento e cultura, a exemplo de Bacon e Deleuze, mas precisam, antes, imputá-las como fato a outrem, para não parecerem despretensiosos metafísicos da dor social. Nós, ¿Caveiras¿ do Bope, gostamos de combater o mal que a pós-modernidade insiste não existir.

O José e o Luiz não conhecem os fuzis. Não conhecem a guerra urbana real na qual vivemos e que mimetizam sob aplausos. Eles exibem o que refutam, em nome do belo. Eles expressam o que repudiam, em nome da arte.

MÁRIO SÉRGIO DE BRITO DUARTE ¿Caveira número 37¿, foi comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro e é filósofo.