Título: Angustiado, despertei
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 13/10/2007, Opinião, p. 7

Estive cansado, junto com tantos outros, com a dificuldade de mudar a trágica realidade que caracteriza o Brasil. Mas despertei.

Despertei para o risco de que esses problemas pareçam pequenos diante do risco avassalador à frente: o de uma sociedade tão dividida que suas partes não percebam a semelhança entre si. Despertei para o fato de que o Brasil ainda não conseguiu se tornar nação. A Independência, a Abolição, a República, a Democracia foram insuficientes para unir nosso povo, compacto e solidário na convivência de suas desigualdades.

Despertei para a percepção de que a solução não está na simples manutenção da democracia e do crescimento econômico, nem em uma revolução social e econômica que desfaça tantas coisas boas que o Brasil conquistou nas últimas décadas: liberdade democrática, infra-estrutura econômica, estabilidade monetária.

Despertei para o sentimento de que só a escola transforma a população em povo, e de que o amanhã de um país tem a cara da sua escola de hoje. O caminho para a construção do futuro da nação está na educação da sua população. E, sem garantir o acesso de todos à educação com a mesma qualidade, estamos condenando milhões de brasileiros à marginalidade e desperdiçando o potencial de cada um deles.

Despertei para o fato de que os dois muros que emperram o Brasil - o do atraso civilizatório e o da desigualdade social - só serão derrubados por uma revolução educacional. E essa revolução só ocorrerá se for tratada como questão nacional. Não teremos futuro se o futuro de nossas crianças depender da sorte da família em que nascerem e da cidade em que viverem.

Despertei para o fato de que, se no futebol a bola é redonda para todos, e os filhos das classes pobres alcançam o topo de carreira, uma escola igual para todos pode derrubar o muro de desigualdade que há séculos se perpetua no Brasil. E se os milhões de brasileiros que jogam futebol nos tornaram campeões mundiais, milhões de escolas com máxima qualidade nos tornarão também campeões na ciência e tecnologia e na economia de amanhã.

Despertei para o fato de que o mundo começa a substituir os operários por operadores, diferentes na qualificação educacional e profissional de que dispõem para entender o novo mundo global que surge, para usar os novos instrumentos técnicos da revolução científica e tecnológica, para se indignar com as injustiças sociais e os riscos ecológicos, para se deslumbrar com a beleza que os cerca.

Despertei para a perspectiva de que o capital do futuro está no conhecimento, criado em centros de pesquisas que surgem nas universidades, mas nascem na educação de base com qualidade para todas as crianças. E de que não haverá futuro para a economia se o Brasil não se tornar um grande produtor de conhecimento.

Tristemente despertei para a tragédia da pequena consciência da população brasileira em relação à educação. Os ricos consideram que basta educar seus filhos, os pobres imaginam que uma boa educação para seus filhos não é um direito, nem sequer uma necessidade; os líderes políticos, empresariais e sindicais não percebem a importância da educação de base. Despertei para o fato de que o Brasil não terá futuro se não revertermos essa consciência equivocada, e despertarmos nos ricos a necessidade de educar a todos, nos pobres o sentimento do direito e a necessidade de educar seus filhos, e nos líderes a consciência da educação como vetor da riqueza.

Despertei para o fato de que nosso papel é despertar o povo brasileiro, e todas as suas classes, não só para o cansaço com a realidade, mas para a esperança e para a necessidade de uma revolução educacional: garantir escolas com a mesma qualidade em todo o país, para todas as classes e em todas as cidades. Escolas tão boas quanto às melhores no mundo.

Despertei também para a necessidade da paciência, porque essa revolução levará algumas décadas para ser realizada. Mas, angustiado, despertei para a urgência de iniciar imediatamente essa doce revolução.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).