Título: Trânsito deixa 100 mil por ano com deficiências
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 13/10/2007, O País, p. 8

Estudo do Ipea mostra ainda que 500 mil pessoas se envolvem em acidentes anualmente; maiores vítimas são pedestres.

SÃO PAULO. "Alguém me ajude a levantar!" Cláudia Santos, então com 21 anos, estava caída no meio da Rodovia Raposo Tavares, às 22h30m de 15 de fevereiro de 2000, com os colegas de trabalho desesperados ao seu redor. Não sentia dor. Apenas queria ficar de pé. Tinha acabado de sair da fábrica onde cumprira o último dia como prestadora de serviços. A rodovia não tinha passarela, e as pessoas atravessaram as duas pistas à base de coragem. Um carro passou em alta velocidade, atropelou Cláudia e foi embora, como se nada tivesse acontecido.

- Estava sem dor, mas não conseguia me levantar. Daí, ouvi alguém falando: "Procura a perna dela, para levar no posto de gasolina e pôr no gelo". Então, achei que ia morrer. Só pensava em encontrar meus pais, pedir desculpas por ter ido morar sozinha - conta Cláudia.

De acordo com levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), cem mil pessoas que sobrevivem a acidentes de trânsito ficam com deficiências físicas permanentes ou temporárias todos os anos. A pesquisa acompanhou os dados do Ministério da Saúde de 2003 a 2005, quando foi constatada a média anual de 34 mil mortes nas estradas.

Outro estudo do Ipea mostra que 500 mil pessoas se envolvem todos os anos em acidentes de trânsito. Dos danos que podem ser quantificados, isso custa ao país algo em torno de R$28 bilhões. As maiores vítimas são pedestres, como Cláudia. O período com maior número de acidentes com eles nas rodovias bate com o do ocorrido com a jovem: entre 20h e 22h30m.

Cláudia teve de reaprender a viver. A perna direita não pôde ser reimplantada porque demorou a chegar ao hospital. Ela, que trabalhava como costureira e hoje anda com a ajuda de muletas, também quebrou a bacia, lesionou o pé e teve o intestino afetado. Não conseguia mover a perna que restou. Ainda na cama, um ano depois do acidente, teve outro choque: o namorado morreu em um acidente de moto. Agora, é atleta.

Desde o ano passado, Cláudia pratica natação. Há dez meses, treina remo adaptado para deficientes físicos. Entrou para a seleção paraolímpica brasileira. Semana passada, ganhou a medalha de ouro no Mundial de Remo. Bateu o recorde mundial.

Cláudia não se queixa de nada. Diz que nem pensa no motivo que levou o motorista a não parar para prestar socorro.

- Quanto mais você aceita, melhor é para você. Eu digo para o meu pai, que não aceita o que aconteceu: "Pai, a perna não vai voltar, não vai crescer".

Cláudia recebe R$870 de aposentadoria e voltou a morar com os pais. A única parte difícil foi o início do tratamento, quando não conseguia se mover. Agora, sonha com as Olimpíadas de Pequim. A vaga está garantida, graças ao mundial da Alemanha. Outro sonho é uma prótese "inteligente". Mas, sem patrocínio e sendo arrimo de família, é difícil juntar os R$60 mil da perna, que conta com sensor ativado por comandos ligados a um chip.

Outra vítima da estrada, Mara Gabrilli nunca imaginou que uma curva pudesse trazer tantas transformações. Em agosto de 1994, com a cabeça para fora do carro na volta da viagem de Parati a São Paulo, Mara queria ver a lua. Não era a primeira nem segunda vez que o namorado corria no carro, e ela brigava com ele por causa disso.

Embora estivesse com o cinto, estava mal acomodada, o airbag não abriu, e quando o carro despencou no barranco, ao perder o rumo na curva, Mara fraturou a coluna. Ficou tetraplégica. Foram horas esperando o resgate, com o carro em um pântano. Um amigo e o namorado do lado de fora, desesperados:

- Não imaginava que tinha quebrado o pescoço. Sentia muita dor, achava que estava presa. Lembro que via a lua refletida na água. A lua que eu tinha colocado a cabeça para fora do carro para ver.

Naquela época, Mara, formada em publicidade, trabalhava na área. Desistiu. Morava sozinha, em um dúplex, "com escada caracol". Voltou para a família. De classe média alta, pôde buscar os melhores tratamentos no exterior. Hoje tem equipamentos próprios, de eletroestimulação, que a fazem andar. Faz exercícios todos os dias.

- Mas meu "rito de passagem" foi quando decidi fazer a residência em psicologia. Parei de ficar olhando para mim, de ficar cuidando do meu corpo, do "dormir, comer, essas coisas".

Da psicologia, Mara passou para a criação de uma ONG para deficientes físicos. Da ONG para a política foi outro passo. Ela é vereadora pelo PSDB.

Mara, de 40 anos, já movimenta os ombros, uma das mãos quase se mexe. Tem ajudante que arruma seu cabelo e dá comida. Assina documentos com a caneta na boca. Hoje, tem outro namorado.