Título: Fantasmas poloneses de volta à vida
Autor: Lino, Flávio Henrique
Fonte: O Globo, 13/10/2007, História, p. 30

Massacre de 22 mil oficiais pelos soviéticos em 1940 causa polêmica na Polônia.

De um lado, a Alemanha de Adolf Hitler querendo restaurar a glória perdida do Reich e conquistar seu ¿espaço vital¿ na Europa; do outro, a União Soviética de Joseph Stalin desejosa de expandir a revolução proletária para além de suas fronteiras. Entre os dois gigantes arquiinimigos, um frágil país que ¿ após mais de 120 anos retalhado e ocupado pelos poderosos vizinhos ¿ voltara ao mapa do continente apenas duas décadas antes. Foi assim que, em setembro de 1939, em meio ao infortúnio maior que se desenrolava em duas fronteiras com a dupla invasão soviético-alemã, armou-se o cenário para um novo drama que ainda hoje repercute na História da Polônia: o Massacre de Katyn.

Quase sete décadas depois da execução a sangue frio de cerca de 22 mil militares poloneses prisioneiros em plena Segunda Guerra Mundial, a ferida continua aberta. Na semana passada, o presidente Lech Kaczynski foi obrigado a voltar atrás na decisão de antecipar uma cerimônia em homenagem aos mortos no massacre após protestos indignados das famílias das vítimas, que o acusaram de querer fazer uso eleitoral de uma tragédia nacional no pleito do próximo dia 21. Por sua vez, o celebrado cineasta Andrzej Wajda acaba de lançar ¿Katyn¿, dedicado à memória de seu pai, morto na carnificina. Ele pediu que o filme não seja explorado nas urnas.

Em abril de 2006, sobreviventes da pavorosa chacina e parentes das vítimas levaram o tema à Corte Européia de Direitos Humanos, numa ação contra o governo que protege ¿ por um silêncio e uma culpa histórica que mantêm parte dos arquivos referentes ao caso sob segredo de Estado ¿ os assassinos porventura ainda vivos. Para estes, nunca houve um Nuremberg. E nem poderia haver: o massacre da fina flor da oficialidade e da intelligentsia polonesas não foi perpetrado pelos derrotados nazistas de Hitler, mas sim pelos vitoriosos comissários soviéticos de Stalin, com quem a Polônia sequer estava em guerra.

¿ Ficamos surpresos e com muito ódio dos russos quando soubemos. Não acreditávamos como podiam ter feito aquilo com prisioneiros de guerra desarmados ¿ recorda Ignacy Felczak, de 78 anos, presidente da Associação dos Ex-Combatentes Poloneses do Rio de Janeiro, que participou da resistência aos nazistas como escoteiro e depois como militar.

Aliados se calaram por conveniência

Uma pequena aldeia nos arredores da cidade russa de Smolensk, Katyn é um desses lugares que ajudam a definir uma nação. Situado a cerca de 560 quilômetros da fronteira polonesa atual mais próxima, o vilarejo ainda assim é parte inseparável da identidade moderna do país. No mês passado, o presidente Lech Kaczynski ali esteve depositando flores em homenagem àqueles que foram as primeiras vítimas polonesas do comunismo, na primavera de 1940, cinco anos antes de o regime ser instalado em Varsóvia no rastro das botas dos soldados soviéticos que avançavam rumo a Berlim.

Katyn entrou na História como símbolo de infâmia. Num bosque em seus arredores, homens da temida NKVD de Stalin (a precursora da KGB) executaram com tiros na cabeça 4.404 oficiais poloneses. Em duas outras localidades, mais 10.200 tiveram o mesmo fim. Na Bielorrússia e na Ucrânia, mais 7.305 foram mortos, totalizando cerca de 22 mil pessoas. Todos tinham sido feitos prisioneiros pelo Exército Vermelho após a invasão soviética no leste da Polônia, em setembro em 1939, enquanto Hitler esmagava o país pelo oeste.

¿ Os oficiais poloneses teriam sido uma importante força anticomunista se tivessem sobrevivido e voltado à Polônia ao fim da Segunda Guerra. Eles eram fortemente católicos, nacionalistas e irredutivelmente anti-soviéticos, e mesmo presos continuaram atividades contra-revolucionárias. Um percentual alto era de reservistas com formação universitária, constituindo uma parte importante da elite polonesa. Portanto, tanto em termos numéricos quanto qualitativos, um poderoso corpo de oposição em potencial (à sovietização da Polônia) foi removido ¿ explicou ao GLOBO o historiador George Sanford, especialista em Europa Oriental da Universidade de Bristol e autor do livro ¿Katyn e o massacre soviético de 1940¿ (sem edição em português).

A chacina em massa foi revelada pelos alemães em 1943, após a invasão da União Soviética e a descoberta das fossas coletivas. Muitas famílias tiveram então a esperança de conhecer o destino de parentes militares desaparecidos no conflito. Na casa do jovem Ignacy Felczak, cujo irmão Boleslaw, tenente do Exército estacionado na região ocupada pelos russos e que nunca mais dera notícias desde a invasão em 1939, cada nova lista de nomes de vítimas do massacre divulgada pelos alemães trazia a expectativa de uma notícia sombria.

¿ Durante décadas ficamos sem saber se ele tinha sido executado ou não em Katyn. Só em 2001, uma sobrinha minha descobriu que ele morreu lutando contra os alemães perto de Varsóvia ¿ conta ele, que veio para o Brasil em 1960.

Moscou, no entanto, sempre negou qualquer responsabilidade pelo crime, jogando a culpa sobre a Alemanha nazista, um conveniente bode expiatório na época. Com o Exército Vermelho assumindo o ônus principal de perdas humanas na luta contra Hitler, os aliados preferiram não desagradar Stalin e se calaram, apesar de saberem da verdade já na época.

Somente nos estertores do comunismo, em abril de 1990, o líder reformista soviético Mikhail Gorbachov assumiu a culpa de seu país na execução em massa. Arquivos russos foram abertos, mas parte deles ainda permanece fora do alcance público, gerando atrito nas relações entre Varsóvia e Moscou. E, apesar da atitude de Gorbachov, confirmada por seu sucessor, Bóris Yeltsin, os poloneses ainda esperam uma expiação maior da carnificina.

¿ A Rússia afirma que o Massacre de Katyn foi um crime comum, enquanto a Polônia acredita que foi genocídio. Atualmente, a Polônia quer obter os arquivos referentes ao crime, mas o processo de transferência de documentos foi bloqueado ¿ explicou, de Varsóvia, Andrzej Arseniuk, porta-voz do Instituto de Memória Nacional, que investiga crimes cometidos por nazistas e comunistas na Polônia.

Rússia reluta em fechar ferida de vez

Ainda capitaneada por um membro do antigo regime comunista convertido pelas circunstâncias dos tempos à democracia (o presidente Vladimir Putin, ex-agente da KGB), a Rússia reluta em dar o passo definitivo para fechar essa ferida histórica. Para o historiador George Sanford, mais do que uma declaração de culpa, o tema tem a ver com a democratização da própria Rússia.

¿ Só quando a elite russa e o povo aceitarem sua responsabilidade pelo crime em sua totalidade, como os alemães fizeram ao pedirem perdão pelos crimes do nazismo, será possível uma reconciliação de verdade entre russos e poloneses.