Título: DPVAT: fraude agrava drama de acidentados
Autor: Otavio, Chico e Pinto, Anselmo Carvalho
Fonte: O Globo, 15/10/2007, O País, p. 3

Ação de quadrilhas faz o preço de apólice subir e dificulta a vida de quem recorre ao seguro obrigatório.

De uma só vez, no início do ano, cerca de 40 pessoas recorreram ao seguro obrigatório (DPVAT), em Cuiabá (MT), para pedir o ressarcimento pela compra de cadeiras de rodas. Todas alegaram invalidez decorrente de acidente de trânsito e pediram o valor máximo da cobertura de despesas médicas (R$2.700). As empresas seguradores desconfiaram e resolveram verificar. Era fraude.

Um dos beneficiados era a dona-de-casa Julinda Maria Neto, usuária de cadeira de rodas há quatro anos. Ouvida, ela contou que não se recordava de ter sofrido qualquer acidente de trânsito na vida. Diabética há duas décadas, teve a perna esquerda amputada em 2003 por causa de graves problemas circulatórios decorrentes da doença.

- Furei meu dedo em um prego e infeccionou muito. Então o médico disse que o jeito era tirar a perna. Essa doença é terrível - lamentou a dona-de-casa.

Humilde e desinformada, Julinda virou alvo fácil das centenas de quadrilhas que movimentam, no Brasil, uma indústria de fraudes contra o seguro obrigatório. Os números explicam a cobiça: só este ano, o DPVAT arrecadou R$3,5 bilhões e pagou, só no primeiro semestre, R$580 milhões em indenizações.

Julinda, como muitos requerentes, nem sequer sabia onde estava se metendo. Ela tentava há vários meses se aposentar por invalidez em Rondonópolis (que fica a 210 quilômetros ao Sul de Cuiabá), onde vive com o marido aposentado em um bairro de classe baixa, quando recebeu em fevereiro a visita de uma mulher que lhe prometeu um "benefício".

- Não me lembro que benefício era aquele. Ela apenas disse que iria conseguir um dinheiro para mim - recorda a dona-de-casa, que se diz acostumada a fornecer documentos a pessoas que a ajudam na luta pela aposentadoria.

A "máfia da invalidez", como ficou conhecido entre os técnicos de seguro o caso de Cuiabá, foi descoberta antes do pagamento dos benefícios. Mas outras quadrilhas conseguem burlar o filtro das seguradoras e fazem da fraude um ônus pesado para proprietários de veículos e as vítimas de acidentes de trânsito. São eles os maiores prejudicados.

- A fraude acaba entrando no preço do seguro. Quanto mais pagar indevidamente, mas vai entrar na ponta - diz Ricardo Xavier, diretor-geral do convênio DPVAT da Federação Nacional das Empresas de Seguros (Fenaseg).

Preço do seguro superou inflação

O preço pago atualmente por carros de passeio subiu de R$56,77, há dois anos, para R$84,72 em 2007, 49% de aumento num período em que a inflação pelo IPCA não atingiu 6%. Além disso, a suspeita de fraude torna o processo de pagamento mais lento e burocrático em determinados casos, aumentando muitas vezes o sofrimento de quem já perdeu um parente no trânsito.

Para a Fenaseg, não é tão fácil detectar uma fraude. A entidade está convencida de que nove mil pedidos mensais de pagamento de seguro por morte, invalidez ou despesas médicas são falsos, mas apenas um terço deste total é comprovado. Um dos golpes mais aplicados pelas quadrilhas é a criação de pessoas inexistentes, acidentes fictícios e mortes irreais.

O caso de Julinda é outro tipo de golpe. É aplicado por beneficiários e procuradores que pedem indenizações ou reembolsos por mortes, lesões, tratamentos e procedimentos ocorridos por outras causas (e não acidentes de trânsito). Outra fraude recorrente, segundo a Fenaseg, é o golpe aplicado por procuradores que nada repassam da indenização devida aos beneficiários, apropriando-se indevidamente do valor pedido.

Golpe da falsa vítima na Bahia

Entre julho e agosto deste ano, cerca de 80 pessoas de Itabuna, Vitória da Conquista e Feira de Santana (BA) entraram com pedidos de indenização por invalidez. Como a quantidade era elevada para a média das cidades, as seguradoras também suspeitaram. Ao investigar, constataram outro modelo de fraude: alguém, amputado, se faz passar pela verdadeira vítima do acidente, que não sofrera mais do que lesões leves e desconhecia o pedido em seu nome.

Os peritos das seguradores relataram que, ao pedir a descrição do acidente, não obtiveram resposta das supostas vítimas. O passo seguinte foi levantar o boletim de ocorrência e constatar que, em casos onde o impostor contou ter perdido um braço ou uma perna, a verdadeira vítima havia sofrido apenas arranhões.

Em grande parte dos casos, contudo, as quadrilhas se valem da boa fé das pessoas. Julinda, por exemplo, forneceu cópias de seu RG e do CPF. A mulher, que se aproximou usando o nome de uma antiga amiga, afirmou que o dinheiro poderia sair em 15 dias. Desde então, desapareceu.

- Quando vi que estava demorando muito, senti cheiro de malandragem - afirma.

Dois representantes da Fenaseg apresentaram a Julinda um atestado médico falso emitido em seu nome e o pedido de ressarcimento.

Julinda não foi a única vítima do esquema em Rondonópolis. A família de Rosely Fonseca dos Reis, que sofre de hidrocefalia, tem uma história semelhante. Há quatro meses, a mãe, Conceição dos Reis, foi procurada por duas mulheres que se diziam interessadas em ajudar Rosely.

A garota teve diagnóstico de hidrocefalia aos três meses de vida. Sempre se locomoveu em cadeira de rodas. A doença também afetou o desenvolvimento psicológico.

Ivonete dos Santos Costa, irmã de Rosely, conta que as mulheres se aproximaram se dizendo sensibilizadas com o problema da garota. Ofereceram ajuda desde que lhes fossem fornecidas cópias do RG e do CPF de Rosely.

- Uma delas se identificou como Cláudia. Na certa, nome falso. Depois que pegaram os documentos, nunca mais apareceram - conta Ivonete.

*Especial para O GLOBO