Título: Mais uma lei atropelada
Autor: Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 17/10/2007, O País, p. 3
Venda de bebidas alcoólicas é proibida nas estradas de SP, mas todos bebem livremente.
Onze anos depois de promulgada a lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nas rodovias estaduais paulistas, o comércio de cerveja, conhaque, cachaça, uísque ou vinho às margens das estradas administradas pelo governo de São Paulo ou gerenciadas por empresas privadas ainda é prática comum. O GLOBO percorreu nos últimos dois dias trechos da rodovia estadual Raposo Tavares, que liga São Paulo a Mato Grosso do Sul, e constatou jovens e adultos bebendo livremente, sem restrição. Muitos seguiam dirigindo assim que deixavam os estabelecimentos às margens da rodovia.
- É só uma paradinha para relaxar - dizia Arlindo da Cruz, enquanto tomava cerveja ontem num bar do quilômetro 50. O estabelecimento estava separado da rodovia praticamente apenas pelo acostamento. Diariamente, Cruz transita em sua Paraty por trechos da rodovia Raposo Tavares, e sempre que pode pára "para relaxar". - Conheço bem essa estrada. Aqui eu ando até de olhos fechados - disse ele.
O decreto 44.492 de dezembro de 1999, que regulamenta a lei 9.468, assinada três anos antes pelo então governador Mário Covas, diz: "Estabelecimentos comerciais localizados às margens das rodovias estaduais sob jurisdição do Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de São Paulo (DER) ou do Desenvolvimento Rodoviário S/A (Dersa), ou sob regime de concessão, que tenham autorização para acesso à estrada concedido pelo órgão competente, não poderão vender ou servir bebidas com qualquer teor alcoólico".
Antes das baladas, bebidas em postos
Na prática, a situação é outra. Seja em churrascarias, lanchonetes, supermercados, lojas de conveniência, postos de gasolina e até em bancas de revistas, a lei não intimida quem atua nas imediações. Em alguns postos de gasolina, segundo testemunhas, é comum encontrar grupos de jovens bebendo à noite, antes das baladas.
Na região de Mairinque, a 65 km de São Paulo, O GLOBO conversou com quatro jovens que bebiam cerveja sem se importar com o vaivém de caminhões com carga pesada.
- Nunca soube que era proibido vender bebida alcoólica nas estradas. Mas acho uma boa idéia - disse Luiz Fernando de Souza, 19 anos, que dividia com amigos uma mesa repleta de cervejas na padaria Raposão.
Naquele trecho a rodovia está sob responsabilidade da concessionária Via Oeste. A empresa alega que não tem atribuição de fiscalizar estabelecimentos que vendem bebida. A concessionária, segundo a assessoria, não tem poder de punição. A empresa alega que pode apoiar o trabalho de fiscalização, mas não fechar ou impedir o comércio ilegal.
Alguns comerciantes justificam que o estabelecimento não está com o endereço registrado na rodovia, e, por isso, não precisariam cumprir o que manda a lei. Mesmo com acesso direto à rodovia - algumas lanchonetes estão separadas a menos de dez passos da Raposo Tavares -, comerciantes alegam que vendem bebidas porque a lei não atinge os que estão registrados em perímetro considerado urbano.
- Tudo bem que estamos de cara para a rodovia, mas como nosso registro é da rua ao lado, estamos dentro da lei - diz o gerente de um bar, onde um grupo de senhores conversava diante de uma rodada de chope.
A justificativa de que apenas comércio fora da rodovia vende bebida alcoólica não procede. O GLOBO obteve com um consumidor do restaurante Habib´s, no quilômetro 18, a nota fiscal onde estava registrada a venda de três chopes. O endereço da lanchonete é o da própria rodovia Raposo Tavares. Das mesas, a visão é do vaivém de ônibus, caminhões e carros nas duas pistas. Uma alça de acesso liga a lanchonete à estrada. A assessoria do restaurante explicou que a venda de bebida alcoólica é permitida "porque entende que está numa área altamente urbanizada, inclusive com outros estabelecimentos".
Fiscalização falha, punição branda
O descumprimento da lei pode ser explicado pela falta de fiscalização - cuja responsabilidade é do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), ligado à Secretaria Estadual de Transportes - e uma penalidade considerada branda para infratores. Em 1999, a multa foi estipulada em apenas R$297,85, atualizável desde então pela variação do IGPM-FGV. Em caso de reincidência, o valor passa a ser o dobro. O decreto 44.492 determina que a fiscalização deve ser feita pelo DER. O órgão, no entanto, transfere a responsabilidade:
- A transgressão implica que a autoridade policial consiga comprovar que o estabelecimento esteja vendendo uma bebida alcoólica. A lei é meritória, mas o fundamental é uma mudança de comportamento - disse, via assessoria, o secretário estadual de Transportes, Mauro Arce.
O artigo 9º do decreto de 1999 diz que a polícia tem responsabilidade de apoiar o trabalho dos fiscalizadores. Mas o projeto de lei 480, publicado no Diário Oficial de São Paulo em maio deste ano, diz que a fiscalização é de responsabilidade da Polícia Rodoviária. A corporação contesta:
- Mediante a solicitação dos agentes, a Polícia Rodoviária pode prestar a colaboração necessária, e não fiscalizar. Seria um desvio de atividade - explicou o tenente Claudio Ceoloni, da Polícia Rodoviária Estadual.
O diretor do DER, Flávio Simões, justificou o problema:
- O processo de urbanização que chega às rodovias acaba por tonar a lei ineficaz - disse Simões.
Em outubro de 2003, na gestão do governador Geraldo Alckmin, a lei 11.517 proibiu a veiculação de propagandas de bebidas alcoólicas em painéis e similares às margens das rodovias paulistas. Alguns estabelecimentos, no entanto, utilizam esse tipo de propaganda em suas áreas externas.