Título: Eu não queria uma solução traumática
Autor: Aggege, Soraya e Souza, Bárbara
Fonte: O Globo, 17/10/2007, O País, p. 18

Júlio Lancelotti, de 64 anos, padre desde 1985, já apanhou da polícia, brigou com políticos, fez mendigos virarem escritores e médicos. Transformou meninos infratores em trabalhadores. Agora, o jogo virou: padre Júlio foi ameaçado por um membro de seu rebanho, e teve que levar o caso à polícia, denunciando por extorsão pessoas que ajudava a recuperar. Durante três anos, gastou as economias e teve que fazer empréstimos para juntar os cerca de R$50 mil que deu aos bandidos, chefiados por um ex-interno da Febem.

Soraya Aggege

Por que o senhor não denunciou a chantagem antes?

PADRE JÚLIO LANCELOTTI: Eu já tinha procurado a Polícia Militar há um bom tempo, há mais de um ano, um ano e meio. Também procurei o ex-secretário de Segurança, outros secretários... Tentamos vários caminhos. Por fim, há pouco mais de um mês, conversando com o delegado, ele me disse: ¿Olha, agora chega. Vamos tentar outro caminho e você vai seguir as minhas orientações¿. Aí me deu o gravador, me ensinou a usá-lo. Daí, fui fazendo as gravações, informando-o de tudo o que acontecia. Até que agora, depois da última entrega (de dinheiro), um foi preso em flagrante e três fugiram.

Qual o motivo das chantagens?

PADRE JÚLIO: No começo não tinha referência específica. Era uma forma de coação: ¿Você tem que me ajudar e tem que ser com tanto. Não aceito se não for menos¿. Se eu mandasse menos ele mandava de volta e dizia: ¿Tem que ser o que eu pedi, ou não aceito¿. Foi uma relação que acabou se deteriorando, e ele dizia: ¿Vou então resolver do meu jeito e você sabe como é o meu jeito¿.

Violência?

PADRE JÚLIO: Ele já tinha um homicídio, arquivado por falta de provas. E uma pilha de boletins de ocorrência por agressão à mulher. Na minha crença, eles seriam capazes de mudar. Muitas vezes, ele me dizia: ¿É a última vez, padre, não vou mais fazer isso¿.

O senhor demorou a denunciar. Por que?

PADRE JÚLIO: Eu tentei buscar outros caminhos. Tentei acabar com isso da melhor forma. Mas foi se tornando asfixiante, um assédio constante, me seguiam, me ameaçavam. Eu tentei persuadi-los desse caminho. Mas restaurar pessoas não é uma missão fácil, infelizmente. Eu lamento muito.

O que o senhor está sentindo?

PADRE JÚLIO: Muita tristeza. Muita angústia.

Por que demorou tanto para denunciar?

PADRE JÚLIO: Eu não queria uma solução traumática. Mesmo porque ele está solto ainda, não é? Foragido, segundo a polícia. Não sei o que ele está armando.

O senhor sente medo?

PADRE JÚLIO: Sim. Temo muito pelas pessoas com as quais estou ligado. Eles sabem meus caminhos, meus horários, minha casa, conhecem tudo. Confio na proteção de Deus.

E a ameaça de denunciá-lo por pedofilia?

PADRE JÚLIO: Foi uma forma que eles usaram, vamos dizer, para tentar pegar um ponto vulnerável, fraco, que me atingisse. Eu mesmo declarei isso na delegacia. A denúncia quem fez fui eu. Inclusive, se você ouvir parte da gravação, eu disse a eles: ¿Como vocês têm coragem de dizer a uma criança para mentir?¿. E eles dizem ¿Tá, tá bom¿.

Só uma vez mencionou-se crianças?

PADRE JÚLIO: Muito poucas vezes. O argumento sempre presente, o principal, era o da violência, e esse assédio violento: ficavam com o carro parado na porta da minha casa, na missa. Sofri três assaltos nesse período.

Tudo isso vai prejudicar o seu trabalho?

PADRE JÚLIO: Acho que meu trabalho está acima disso.