Título: Maconha e preconceito
Autor: Gigliotti, Analice
Fonte: O Globo, 19/10/2007, Opinião, p. 7

Domingo. Onze da manhã. Subo no elevador do meu prédio junto com o filho de um vizinho, de 14 anos, que trazia consigo meia dúzia de cervejas compradas na padaria ao lado. Entro em casa, abro O GLOBO e, na primeira página, leio a dolorosa notícia da morte do ator Paulo Autran, por câncer de pulmão. A notícia é vinculada a um apelo da viúva contra o tabagismo. Na página 40, leio o título: ¿Maconha desmistificada¿. Em quase uma página inteira do jornal, os personagens entrevistados procuram mostrar que a droga não causa dependência e que deve ter o seu uso medicinal ampliado. Estamos falando de drogas ¿ lícitas e ilícitas.

Naquela reportagem, os autores do livro ¿Maconha, cérebro e saúde¿ se contradizem claramente. Falam que o canabinóide causa tolerância e abstinência, mas repetem inúmeras vezes que sua dependência é psicológica. Não casa. Também defendem que a droga não faz tanto mal quanto o álcool e o cigarro, e pregam a sua legalização.

Vamos lá. Sobre o tipo de dependência que a maconha causa, precisamos esclarecer, antes de tudo, que não há distinção entre o que é psicológico e o que é físico. Quando nós pensamos, nós choramos, sentimos. Isso também é um fenômeno físico que se passa no cérebro. A distinção corpo/mente é antiga e inadequada. Há poucos anos, dizia-se que o cigarro causava unicamente dependência psicológica. Hoje, falam isso da maconha. Graças ao esclarecimento da população ¿ por meio dos meios de comunicação ¿ e a políticas públicas eficazes, nenhum ser humano ligeiramente bem informado diria atualmente que nicotina não causa dependência física.

O que é tolerância? Bem claramente, tolerância é um fenômeno que se traduz pelo aumento do número de receptores no cérebro, fazendo com que o usuário sinta necessidade de doses cada vez maiores da droga. Só assim, ele conseguirá obter o mesmo efeito de quando começou a usá-la em doses menores. Abstinência é um fenômeno que ocorre, porque o cérebro do dependente se modifica ¿ isso mesmo, há uma mudança física no cérebro do dependente. De tão modificado, o cérebro passa a precisar da droga para funcionar minimamente. Na prática, a abstinência se revela assim: quando o usuário de droga tenta reduzir o consumo ou parar de usá-la, sente-se mal.

É deste esclarecimento em relação à maconha que precisamos.

O livro alvo da reportagem, com o devido respeito aos autores e pelo que de bom ele possa trazer, é, em sua essência ¿ segundo mostra a matéria ¿ um desserviço à população ao apresentar argumentos que não são calcados na evidência científica. Estimula jovens a iniciarem o consumo de uma droga que pode lhes causar malefícios.

Destaco aqui que o consumo de um cigarro de maconha equivale ao poder lesivo de cinco cigarros industrializados. A maconha pode levar ao mesmo câncer de pulmão que matou Paulo Autran. Leva a bronquite crônica, enfisema, infecções do aparelho respiratório, e também faz mal aos que convivem passivamente com sua fumaça.

Agora, vamos à tão decantada legalização da maconha. Falei no início deste artigo sobre o filho de um vizinho que subia com meia dúzia de cervejas. Quantos já vimos em situações similares? Uma pesquisa feita nas cidades paulistas de Paulínia e Diadema mostrou que 85% dos menores de idade conseguem comprar bebidas alcoólicas em bares. Não tenho dúvida de que nossos filhos facilmente comprariam maconha nas ruas, caso seu uso fosse legalizado.

Vamos ao uso medicinal. Não é a maconha fumada que pode ser benéfica, mas, sim, o seu princípio ativo, o THC. E devemos deixar claro ¿ por obrigação médica ¿ que existem outros fármacos que também são eficazes para tudo o que a maconha pode ser boa, sem o seu potencial de abuso.

Espero ter contribuído para o esclarecimento dos leitores. E quero deixar claro que não discrimino, sob hipótese alguma, aqueles que usam maconha. Sou frontalmente contra qualquer tipo de preconceito. Mas a melhor arma contra o preconceito é a informação. Aqueles que partirem do princípio de que a maconha é uma droga ¿leve¿ ¿ estes sim, desinformados ¿ estarão sendo pré-conceituosos.

ANALICE GIGLIOTTI é presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas e chefe do Setor de Dependência Química da Santa Casa do Rio de Janeiro.