Título: Casal K: na hora certa e no local oportuno
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 22/10/2007, O Mundo, p. 20

Vitória de Cristina deverá consolidar poder dos Kirchner.

Aprimeira-dama e candidata presidencial argentina, Cristina Fernández de Kirchner, costuma contar em atos públicos que quando seu marido, o presidente Néstor Kirchner, lhe disse, em 2002, que disputaria a Presidência do país nas eleições do ano seguinte, sua resposta foi: "Você ficou maluco". O pessimismo de Cristina era compreensível. Na época, Kirchner era governador da distante província de Santa Cruz, praticamente um desconhecido para a grande maioria dos argentinos. Mas a primeira-dama se enganou. Com o apoio do ex-presidente Eduardo Duhalde (2002-2003) e a decisão do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), vencedor do primeiro turno, de não disputar o segundo, Kirchner desembarcou na Casa Rosada com apenas 22% dos votos.

- O presidente estava no momento oportuno e no lugar certo - disse ao GLOBO o escritor e historiador José Ignácio Garcia Hamilton, autor de vários livros sobre figuras da história argentina e continental, como Simon Bolívar. - Kirchner é hoje uma figura forte, mas não é um homem muito inteligente. É um homem que não conhecia o mundo antes de chegar ao poder, um dirigente muito provinciano.

Mas os planos de Kirchner deram tão certo que não somente ele se transformou no homem forte do peronismo e do país, como está cada vez mais perto de entregar a Presidência a sua mulher - grande favorita das eleições de domingo. De acordo com nove pesquisas divulgadas ontem pelo jornal "Clarín", Cristina vencerá a eleição no primeiro turno.

Segurança, um tema raro na campanha

Numa campanha dominada pela apatia dos eleitores, a primeira-dama conseguiu consolidar sua candidatura sem dar entrevistas coletivas, nem explicar qual será seu plano de governo. Fim de semana passado, a campanha foi contaminada pelo assassinato de três policiais, tragédia que obrigou os candidatos a suspenderem atos públicos. Detalhe: a palavra segurança foi mencionada raríssimas vezes pela candidata do governo.

- O casal K tem um projeto de poder pessoal; seu objetivo é acumular poder econômico e político - afirmou Garcia Hamilton.

Segundo o historiador, "Kirchner é um homem quase de bairro, que não sabe o que é uma economia competitiva. O presidente pratica um capitalismo de amigos, com ameaças e pressões".

O relacionamento entre Kirchner e o setor privado é, de fato, complicado. O presidente exige dos empresários que cumpram ao pé da letra suas exigências. E quando alguma empresa opta por adotar medidas mal vistas pela Casa Rosada, passa a ser alvo de duros ataques de Kirchner. Uma das empresas mais questionadas pelo presidente foi a Shell, que desde o início do governo protagonizou duros embates com Kirchner. Por temor do governo, os empresários evitam criticar publicamente a Casa Rosada, mas o clima no setor privado é de forte preocupação.

- Este é o governo do telefonaço. Quando Kirchner não gosta de algo ou quer alguma coisa, ele liga e nos pressiona. Assim funciona - comentou um empresário brasileiro, que preferiu não revelar seu nome.

A atitude do presidente, disse Garcia Hamilton, lembra, em alguns aspectos, a personalidade de Juan Domingo Perón.

- Como Perón, Kirchner atacou a imprensa, reformou o Supremo Tribunal de Justiça por conveniência e ignorou o Congresso. Eles não são exatamente iguais, porque nos anos 40 e 50 tivemos uma ditadura. Mas existem semelhanças - comparou. - Perón fez com Evita, e depois com Isabelita, o que Kirchner está fazendo com Cristina. O que mostra que nosso país não é republicano.

O historiador fez uma ressalva:

- Cristina é uma profissional e Evita não tinha terminado o primeiro grau. Mas a primeira-dama é muito menos culta do que diz ser. A principal semelhança entre os casais é o ressentimento social. A atitude é a mesma, um casal que governa o país como se fosse um bem patrimonial.

O relacionamento com a imprensa é uma das características de Kirchner que, de acordo com Garcia Hamilton, lembra Perón:

- Ameaçar e tratar mal a imprensa não é próprio de um presidente republicano.

Um dos países mais respeitados do mundo até a década de 30, a Argentina, segundo Garcia Hamilton, é hoje uma nação que deixa muito a desejar em matéria de democracia econômica e social:

- Democracia é um governo eleito pela maioria, mas que respeita as minorias. Kirchner não é um ditador, mas é um presidente hegemônico e centralista. Aqui não há liberdade de imprensa, alternância no poder, debate público e divisão de poderes plena.