Título: Ainda a judicialização
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 24/10/2007, O País, p. 4

Na tentativa de recuperar o terreno perdido para o Executivo e o Judiciário, sem, no entanto, contribuir para crises institucionais, um grupo influente de parlamentares prepara-se para dar concretude a algumas propostas que reorganizem, do ponto de vista majoritário do Legislativo, as relações entre os partidos políticos e parlamentares. Há um entendimento generalizado no Legislativo de que, embora não tenham definido, por falta de consenso, uma reforma política, os legisladores decidiram, sim, o que não queriam ao rejeitar, por exemplo, o sistema de lista fechada, coerentes com o entendimento de que o eleito não pode ficar dependendo de uma direção partidária que muitas vezes é oligárquica e centralizadora.

Da mesma forma, na Constituinte de 1988, ao decidirem retirar da Constituição a perda de mandato como punição pela mudança de partido, os constituintes tomaram uma decisão que, na interpretação da maioria, não poderia ter sido desautorizada agora pelos tribunais superiores. Por essa visão, o que aconteceu nesse caso não foi uma falta de decisão do Legislativo em cujo vácuo atuou o Judiciário, mas sim o Judiciário assumindo uma interpretação da lei que foi além do desejo dos legisladores da Constituição.

Sobre essa questão, Mauricio Caldas Lopes, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, lembra que "a tarefa, de interpretação e aplicação da Constituição, é, evidentemente, a tarefa do Judiciário (...) É saudável que o Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional, desempenhe o papel que lhe fora assinalado na própria Carta da República, determinando o alcance e o conteúdo dos direitos que abriga - sem prejuízos de outros - sobremodo quando o Parlamento, entretido em veicular e assegurar seus próprios interesses, permite que o Executivo legisle por medidas provisórias, depois pura e simplesmente chanceladas".

Ele lembra as palavras do juiz Marshal, no julgamento Marbury x Madison, em 1803, com base nas definições de Alexander Hamilton, um dos pais da Constituição dos Estados Unidos: "É muito mais racional entender que os tribunais foram concebidos como um corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com a finalidade, entre várias outras, de manter esta última dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é própria e peculiarmente da incumbência dos tribunais".

"E se ocorresse que entre as duas existisse uma discrepância, deverá ser preferida, como é natural, aquela que possua força obrigatória e validez superiores; em outras palavras, deverá ser preferida a Constituição à lei ordinária, a intenção do povo à intenção de seus mandatários".

Por essa definição, os tribunais superiores deveriam ter entendido a decisão implícita dos legisladores de não punir com a perda de mandato a infidelidade partidária. Lembra-se que em nenhum instante nas discussões da reforma política, que acabou não sendo aprovada, discutiu-se a perda de mandato dos infiéis.

A proposta sobre fidelidade que existia era a que exigia a filiação ao mesmo partido por quatro anos para que o parlamentar pudesse se candidatar. Poderia mudar de partido durante o mandato sem perdê-lo, ficando apenas impossibilitado de se candidatar nas eleições seguintes, no caso dos deputados.

Como a proposta vinha do Senado, cujo mandato é de oito anos, os deputados se puseram contra. Sem que pareça resposta às decisões dos tribunais superiores, há um movimento para aprovar projeto de lei que regulamente essa e outras questões que dizem respeito ao funcionamento dos partidos.

O projeto do líder do PR, Luciano Castro, que abre "janela" para ajustes partidários perto das convenções, deverá ser usado como base para proposta mais ampla. Há outros pontos importantes para que o Congresso recupere a autonomia diante dos poderes Executivo e Legislativo, e assuma a liderança no que é seu papel essencial, o de legislar.

Por isso estão sendo retomadas propostas que já estiveram em discussão, como a criação de comissão que defina pontos, como elaboração de proposições, para que o Legislativo tenha iniciativas das matérias mais relevantes para o país, e definição, por emenda constitucional, do que seja "relevância e urgência", condições para a edição de medidas provisórias.

Há também a intenção de retomar a discussão sobre medidas que reduzam o número de partidos no Congresso. Sem que isso seja feito, a Casa não sairá da situação secundária em que hoje se encontra na formulação das políticas nacionais, situação que gera um estado que o cientista político Sérgio Abranches classificou de "alienação parlamentar das responsabilidades com as políticas públicas", que estimula a relação clientelista com o Poder Executivo.

Em trabalho intitulado "O Processo Legislativo: tendência ao impasse", que já analisei aqui anteriormente, Abranches concluiu que houve mudança, para pior, no desempenho do Legislativo a partir de 2000, no que toca à aprovação de projetos. As novas regras de aprovação de medidas provisórias, que trancam a pauta a partir de 45 dias de tramitação, fazem o Executivo dominar o processo legislativo.

A proporção de matérias não apreciadas chega a 85% no primeiro governo Lula. Para Abranches, a edição de medidas provisórias passou a ser instrumento de bloqueio do Legislativo pelo Executivo.