Título: Neurocirurgiões abrem crânio a marteladas
Autor: Engelbrecht, Daniel
Fonte: O Globo, 24/10/2007, Rio, p. 16

Paciente submetido a técnica do século XIX tem ossos quebrados e precisará de prótese.

A utilização de furadeiras de marcenaria em neurocirurgias, mostrada pelo GLOBO ontem, e considerada inadequada por especialistas, é apenas um dos problemas dos hospitais públicos. Sem brocas para o equipamento, médicos do Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, apelaram, nos dois últimos fins de semana, para instrumentos ainda mais rudimentares. Eles usaram martelos e goivas (espécie de alicate cirúrgico) para abrir a cabeça de pacientes com lesões cerebrais. O procedimento não é utilizado na medicina desde o século XIX. Um dos pacientes operados, no sábado retrasado, foi um aposentado de 70 anos, encontrado desacordado em Nova Iguaçu. Com um hematoma no cérebro, ele teve o crânio aberto a marteladas.

- Gastamos três horas para fazer a cirurgia, quando poderíamos ter levado 45 minutos. Além dos riscos para o paciente, nesse meio tempo outras pessoas chegaram na emergência e tiveram que esperar - afirmou um dos médicos que participou da operação.

Segundo ele, o procedimento voltou a ser repetido no último fim de semana, por falta de brocas na unidade. A notícia deixou perplexo o diretor da Câmara Técnica de Neurocirurgia do Conselho Regional de Medicina (Cremerj), Aloisio Carlos Tortelly:

- Isso é um absurdo total, coisa do século retrasado. Quando se faz uma craniotomia, retira-se um tampão do crânio, uma rodela de osso, que volta para o lugar depois da cirurgia. Com a goiva, o osso é quebrado, não sendo possível recompor o crânio. Daqui dois ou três meses, terá que ser feita nova cirurgia para colocar uma prótese no paciente.

Professor de medicina da UFRJ e chefe do setor de neurocirurgia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Jorge Paes Marcondes não se lembra de ter visto esse tipo de procedimento ser realizado em pessoas vivas:

- Nunca vi uma coisa dessas sendo feita, senão em autópsias. Se isso ocorreu, só posso acreditar que foi numa tentativa desesperada de salvar uma vida.

Marcondes também faz ressalvas ao uso de furadeiras de marcenaria em cirurgias.

- Precisamos admitir que furadeiras não foram produzidas para neurocirurgias. Os hospitais de melhor qualidade não as usam há décadas. A utilização de furadeira é conhecida quando não há equipamentos mais adequados, desde que possam ser corretamente esterilizadas. O uso de álcool, como relatado, não é adequado de forma alguma - pondera.

O presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, que tem sede em São Paulo, José Carlos Saleme, ao contrário, não vê problema algum no uso de furadeiras. Ele taxou de sensacionalista a denúncia dos médicos fluminenses.

- Médicos do mundo inteiro ainda usam a furadeira. O importante é a esterilização - disse.

Segundo a direção do Hospital da Posse, não há falta de brocas para cirurgias. O diretor, Marcos de Sousa, também destaca que equipamentos adequados para a realização de craniotomias estão funcionando normalmente, incluindo um craniótomo, que substitui as furadeiras. Consultados pelo GLOBO, médicos da unidade disseram que o craniótomo só é usado em cirurgias eletivas, não estando disponível para os casos de emergência.