Título: Êxodo em massa do inferno
Autor: Harazim, Dorrit
Fonte: O Globo, 25/10/2007, O Mundo, p. 39

Labaredas que varrem cidades levam bombeiros à exaustão e moradores à incerteza.

Cena 1: sete bombeiros estão estirados de barriga para cima no meio-fio do condomínio La Terraza, bairro de Rancho Bernardo, uma das áreas nobres que se debruçam sobre a cidade de San Diego. Seus capacetes e partes do equipamento estão espalhados pela calçada. As jaquetas amarelas dos uniformes servem de travesseiro. Eles dormem, exaustos, alguns ainda com óculos de proteção no rosto. Perderam mais uma batalha: metade das casas do quarteirão ainda arde, já sem fogo, e outras mais serão engolidas por labaredas. Simplesmente não há como vencer o vento que faz chamas saltarem muros, pularem de coqueiro em coqueiro, rastejarem de forma quase líquida por arbustos e matas. Algumas conseguiram cruzar uma autopista duas vezes mais larga que a Via Dutra.

¿ Não tento mais apagar focos. Só dá para tentar fazer com que ele não se espalhe ¿ diz o capitão Tony Rivas.

Na sucessão de incêndios que varre a região de San Diego desde domingo, quem teve a infelicidade de morar na rota dos ventos em chamas tinha uma única decisão clara a tomar: salvar a pele ou se apegar à propriedade.

Além de tantas outras, esta é, certamente, a diferença fundamental entre os incêndios da Califórnia e a tragédia do furacão Katrina, dois anos atrás. Em Nova Orleans não houve escolha, a batalha foi uma só ¿ tentar escapar com vida. Mil quinhentos e setenta e sete não conseguiram. Em San Diego, até a noite de quarta feira, havia uma vítima fatal ¿ o engenheiro ambiental Thomas Vashock, que morreu tentando defender sua casa de Potrero. Das quatro outras vítimas de que se tinha notícia até ontem, duas tiveram morte natural em casa, duas faleceram em abrigos, e a quinta foi achada sem vida num quarto de hotel.

Este dado atesta o óbvio: o que esteve a cargo de providências humanas, foi feito. Não é qualquer administração regional que consegue remover 560 mil moradores (15% da população) em apenas três dias, enquanto uma área equivalente à da cidade de Nova York é engolida pelo fogo.

Um céu de `inverno nuclear¿

Em contrapartida, o que esteve sob os caprichos da natureza não conseguiu ser desfeito pelo homem. Com o ar rarefeito de apenas 6% de umidade, calor intenso e ventos de quase 100 km/h soprando em direção contrária a seu curso normal, o fogo virou furacão incandescente. E o que começou no domingo com dois focos isolados ¿ um perto da fronteira com o México, outro na serra mais nobre do condado de San Diego ¿ esparramou-se a ponto de engolir 1.250 propriedades em menos de 48 horas.

De quebra, transformou o céu da região mais crítica numa espécie de inverno nuclear ¿ escuro e espesso em pleno meio-dia. Os helicópteros do Corpo de Bombeiros, da Marinha, dos Fuzileiros Navais e da Guarda Nacional despachados para conter o inimigo retornavam a suas bases com os tanques d¿água ainda cheios: a nuvem de fumaça, fuligem e cinza preta que brotou dos incêndios era tão espessa e rente ao solo que os pilotos não conseguiam furá-la.

Enquanto isso, no perímetro central de San Diego, um cheiro ocre de queimada servia de lembrete da tragédia que se desenrolava a menos de 35 quilômetros. Pais aflitos faziam rondas em farmácias na tentativa inútil de comprar máscaras cirúrgicas; escolas dispensaram alunos para abrigar desalojados; empresas fecharam as portas por precaução ou ausência de funcionários e a vida na cidade acabou contaminada pela síndrome do perigo iminente. Grudadas no noticiário ininterrupto da TV, famílias debatiam pela enésima vez o que deveriam levar se, e quando, chegasse a hora de abandonar a casa.

O brasileiro Joaquim Cruz, medalha de ouro nos 800 metros nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, tem casa própria no bairro de University City, próximo do litoral e um pouco mais próximo do fogo. Morador dos EUA há mais de 20 anos, ele decidiu ser radical para não ser engolido pela indecisão generalizada: colocou numa mochila pequena apenas os passaportes e certidões da família, a documentação da casa, papelada financeira e recomendou à mulher Mary que mantivesse as jóias à mão.

¿ Ah, também coloquei minhas duas medalhas olímpicas ¿ acrescenta.

E nenhum par de tênis?

¿ Não, o tênis já vai no pé. Afinal, não vou sair correndo de incêndio calçando sapato social.

O brasileiro foi exceção, uma vez que à sua volta vizinhos empilhavam caixas e caixas com pertences que consideravam de valor sentimental, e portanto indispensáveis na eventualidade de terem de recomeçar a vida.

Se em University City essa probabilidade se mantém remota, nos bairros mais ameaçados o tempo de indecisão é curto e se dá por etapas. Primeiro, o morador recebe um telefonema ¿911 invertido¿, nome dado ao sistema de gravação informatizada, com o aviso para abandonar a casa. Nos EUA, o 911 é o número que se disca em emergências, e o termo ¿invertido¿ foi criado porque, no caso, são os serviços de emergência que ligam para você. Só que nos dois primeiros dias da tragédia a ferocidade dos ventos foi tamanha que muitos moradores tiveram menos de uma hora para pegar a estrada:

¿ Não sou mais proprietário sequer de um terno ¿ disse o advogado Jeff Mangum, morador de Poway, um dos bairros mais devastados. Ele segurava um álbum de fotos, documentos, uma muda de roupa e assistia, em silêncio e à distância, à batalha de sua casa contras as labaredas.

Aqueles que relutavam em atender à ordem de evacuação, quando obrigatória, acabavam flagrados pela operação pente fino que o Corpo de Bombeiros fazia de porta em porta. Nos bairros em que a ordem era apenas recomendada os dilemas não eram menores, uma vez que o perigo mudava de rota de um instante a outro. O menor indício de fuligem numa mesa de cozinha podia anunciar a fatalidade em curso.

Cena 2: entre os 75 pacientes sendo transferidos em macas ou cadeiras de rodas para ambulâncias, e vestindo a bata azul do Hospital Pomerado, no bairro de Poway, está uma idosa com expressão assustada. Ela porta uma máscara respiratória, o par de óculos anti-chamas parece gigantesco em seu rosto miúdo, e no braço direito ela ainda mantém o tubinho de plástico para receber soro. Indagada como se chama, responde com insistência:

¿ Tenho 88 anos e dois terços. Oitenta e oito e dois terços. Oitenta e oito e dois terços.

Ao contrário de Nova Orleans, onde diretores, médicos e enfermeiros de hospitais respondem a processo por abandono e morte de pacientes, San Diego estava preparada não só para remover como para realocar pacientes das zonas de perigo. Graças ao gigantesco complexo hospitalar militar da região, que integra a maior base naval em território americano, esta parte do vasto deslocamento humano correu sem problemas.

Em contrapartida, a surpreendente quantidade de animais domésticos e de grande porte que dificultaram a mobilidade de seus proprietários se revelou dilacerante. Na van do casal George e Wendy Santamaría, que fugiam de uma zona rural calcinada, constavam a filha de 17 anos, 13 coelhos, 5 patos, 2 gatos e um cachorro. Na outra ponta da geografia social, como em Rancho Santa Fé (cuja renda média anual é de U$197 mil), propriedades avaliadas em US$3 milhões eram mostradas na TV com a água das piscinas literalmente fervendo, colunas gregas derretendo feito geléia e fileiras de palmeiras transformadas em tochas. Pareciam cenários de filmes-catástrofe. Ali, moradores tiveram de atrelar cavalos às Mercedes, BMWs e carros italianos nos quais faziam a viagem de despedida. Outros não conseguiram chegar a tempo a seus haras ou currais.

Cena 3: sentada no bar do hotel DoubleTree de Mission Valley, um dos mais bem localizados de San Diego, uma mulher elegante não desgruda os olhos do telão de plasma enquanto fala ao celular. Veste camiseta bege discreta, jeans de grife e um Rolex no pulso. Não usa maquiagem ou qualquer jóia. Está sozinha com sua bolsa Vuiton legítima. Ela não é a única flagelada a ter buscado abrigo no DoubleTree ¿ eles são reconhecíveis por circularem com seus bichos de estimação por elevadores e halls, quando em tempos normais pets são proibidos pela direção.

Atendimento vip em estádio

Todos os quartos de hotel de San Diego foram sendo ocupados mas nem todos os refugiados foram parar em hotéis. Dos 46 abrigos que brotaram, o mais notório acabou sendo o estádio Qualcomm. Sede dos Chargers, time de futebol americano local, abriga quase 10 mil retirantes. Ali, já nas primeiras 24 horas foi montada uma operação de atendimento eficiente, precisa e coordenada.

Na noite de segunda-feira a adestradora de animais Julie Lawter podia ser vista na imensidão do estacionamento cuidando de seus quatro cachorros Huskie, todos numa van entupida até o teto. Enquanto isso, o marido e o filho de 9 anos dormiam no carro da família, ao lado.

¿ Começamos a empacotar nossas coisas às 4h da manhã e saímos de casa ao meio-dia ¿ conta. ¿ Além de álbuns de fotos, diários, comida, roupa e coisas de primeira necessidade, soquei dentro da van as medalhas de escoteiro do meu filho e coisas como um pote de flores que ele fez para mim no seu primeiro ano de escola. Não sei o que vamos encontrar quando o perigo passar mas o que encontramos aqui no estádio é quase mais surreal. Tem de tudo, cobertores, camas de armar, comida, montes de voluntários, TV para quem quer acompanhar o fogo passo a passo, ração para animais, tudo.

Nos próximos dias, com a esperada mudança de intensidade dos ventos, as labaredas conseguirão ser domesticadas pelo homem. Mas quem ouviu o uivo acachapante do fogo varrendo o que encontrava pela frente, lembrará da frase de alguém que correu:

¿ Se existe um som no inferno, ele deve ser assim.