Título: Nas bocas, uma vida nada cor-de-rosa
Autor: Guimarães, Ana Cláudia e Auler, Eduardo
Fonte: O Globo, 28/10/2007, Rio, p. 17

Mulheres atuam cada vez mais no tráfico nas favelas do Rio, em funções como segurança e chefe da venda de drogas.

Sem alarde, as mulheres estão ocupando posições até agora estritamente masculinas no tráfico de drogas do Rio. Elas chegaram ao alto escalão da criminalidade e desempenham todas as funções nas bocas-de-fumo. Podem ser as donas do negócio, as responsáveis pela segurança dos chefes ou as que preparam e vendem as drogas. O universo feminino inclui ainda uma rede de apoio aos homens envolvidos no tráfico. Há mulheres que sobrevivem vendendo comida, comprando roupas, cuidando dos feridos, ajudando os que saem da prisão, pagando propinas a policiais e até satisfazendo sexualmente os traficantes.

O retrato inédito sobre o envolvimento das mulheres com o tráfico faz parte de um estudo que foi a base para o livro "Falcão, mulheres e o tráfico", de Celso Athayde e MV Bill. Para conhecer essa realidade, eles percorreram 20 estados, durante oito anos, à procura de histórias que revelassem o que levou crianças, adolescentes, jovens, mães e até avós a buscarem uma vida no mundo do crime. Relatos que terminam, na maioria dos casos, de forma trágica. Todos os nomes são fictícios.

- Eu imagino que 20% dos serviços das bocas-de-fumo sejam desenvolvidos por mulheres. Elas estão em todas as áreas na escala do tráfico. É claro que existem menos mulheres do que homens, mas elas estão ocupando espaço na hierarquia - disse Celso Athayde.

As mais bem-sucedidas se orgulham do respeito e do poder que conquistaram em meio aos homens, mesmo numa atividade criminosa. Janaína, de 22 anos, não esconde a satisfação quando revela seus ganhos ao arriscar a vida: R$2 mil por mês. Responsável pela segurança de um chefe do tráfico na Zona Sul, ela abriu mão de ter sua própria casa e de cuidar da filha, diante do risco que seria ficar ao seu lado. Por segurança, não usa celular e dorme cada dia num lugar diferente.

- Sinto falta de uma vida normal, mas o sonho de ser mãe acabou me levando ao tráfico. Só queria ter uma família, mas meu ex-marido enlouqueceu na prisão e ameaçou matar até a nossa filha. Eu tinha 17 anos quando procurei os amigos. Queria me proteger. Comecei de baixo, mas agora ninguém mexe comigo. Faço a segurança do patrão e sou respeitada em qualquer favela - afirmou Janaína, que garante não ter medo da morte. - Se eu morrer hoje, minha mãe e minha filha ficarão bem. Elas têm tudo que precisam.

Dorinha, de 20 anos, descobriu o crime na própria família. O pai morreu a serviço do tráfico. A mãe é viciada em cocaína, daquelas que vendem tudo em casa para manter o vício. Desde pequena, a jovem tinha dois sonhos: virar bandida e ir à Disney, nos Estados Unidos. Até agora, só realizou o primeiro. O outro está cada dia mais distante, principalmente para quem sequer pode sair da favela onde vive.

- Adoro essa vida que levo. Gosto é de ficar aqui (uma favela na Zona Oeste). Foi o caminho que escolhi porque tive e tenho oportunidades para largar o crime - contou Dorinha. E acrescentou: - Não gosto de sair nem para comprar roupa. A polícia é doida para pôr as mãos em mim. Não tenho medo da morte, mas de ser torturada ou estuprada. Se me pegarem aqui dentro, eu mesma me mato, porque ando armada. Para a prisão, não vou de jeito nenhum.

Às vezes, elas chegam a pôr suas vidas em risco para conquistarem a confiança dos chefes. Aos 23 anos, Kelly, que trabalha vendendo drogas numa boca-de-fumo em São Gonçalo, lembra que sempre manteve sua posição em tiroteios com a polícia, para demonstrar coragem, mesmo quando outros seguranças do tráfico já haviam recuado.

- Precisamos mostrar que somos iguais aos homens. Faço tudo que me pedem - disse a jovem, que, como outras traficantes, evita usar drogas e mantém a proximidade com a família.

Para muitas, o tráfico é considerado somente uma fonte de renda, atraindo também mulheres acima de 30 anos.

- O crime reflete o mesmo modelo social em que vivemos. Elas estão próximas ao ambiente do tráfico e acabam desenvolvendo a idéia de que aquele espaço não é tão ruim assim - afirmou MV Bill.

SEXO EM TROCA DE R$5 E UM POUCO DE DROGA na página 18

* Do Extra

BOQUETEIRAS: São as que satisfazem os traficantes durante o trabalho.

CARGUEIRAS: Transportam drogas, armas e também dinheiro para os bandidos.

DONAS DA FESTA: Controlam e organizam todas as festas na favela para aumentar a venda da boca-de-fumo.

DONAS DO MORRO: São as que controlam as bocas-de-fumo.

FOGUETEIRAS: Avisam, soltando fogos de artifício, sobre a chegada da polícia ao morro.

JOGADORAS: São as responsáveis pela endolação da droga.

ESTILISTAS: São as que escolhem e compram roupas para os traficantes que não podem sair da favela.

MENINAS DA CONTENÇÃO: São as que defendem as comunidades. Elas usam as armas mais potentes, como fuzis e metralhadoras.

PRIMEIRAS-DAMAS (AS FIÉIS): São as mulheres oficiais dos chefes do tráfico nas favelas.

PRINCESAS: São as jovens de classe média que entram para o tráfico de drogas.

QUÍMICAS: São as responsáveis pela mistura das drogas (cocaína e crack).

SEGURANÇAS: Protegem o chefe da favela.

TIAS DO ARREGO (REGADORAS): São as responsáveis pelo pagamento de propinas aos policiais.

TIAS DA COMIDA: Sobrevivem vendendo comida para traficantes.

TIAS QUE FAZEM TUDO: Avisam sobre a chegada da polícia, levam e trazem recados da cadeia para as favelas, cuidam de traficantes feridos e recebem bandidos em suas casas.

VAPORES: São as responsáveis pela venda de drogas.