Título: Tias assumem papel de mães no tráfico
Autor: Guimarães, Ana Cláudia; Auler, Eduardo
Fonte: O Globo, 30/10/2007, Rio, p. 16

Elas cuidam, alimentam e protegem os falcões por dinheiro.

No dia-a-dia das favelas, poucos sabem o que elas realmente fazem. À primeira vista, não passam de mulheres de meia-idade entretidas com os afazeres domésticos. Mesmo sem aparentar, elas assumiram um papel fundamental na rede do crime: são as ¿tias¿ do tráfico, que desfrutam da confiança dos chefes dos morros do Rio.

Elas estão à frente da rede de apoio aos falcões. Entre as funções que desempenham, são responsáveis por cuidar de traficantes feridos, hospedar os que estão saindo da prisão, vigiar o morro, ajudar a tirar bandidos da favela e até mesmo pagar propina a policiais. Dão apoio ainda aos que são abandonados por suas famílias, oferecendo comida, roupas e carinho. Consideram-se uma espécie de mães improvisadas.

Suas histórias estão no livro ¿Falcão ¿ Mulheres e o tráfico¿, de MV Bill e Celso Athayde. São relatos como o de Terezinha (todos os nomes são fictícios), de 42 anos, que chegou a arriscar sua vida ao ajudar um traficante baleado durante uma operação policial a deixar uma favela da Zona Oeste. Grávida de oito meses, ela fingiu que passava mal, amparou o bandido ferido e conseguiu retirá-lo do morro.

¿ Passei o sangue que escorria nas suas costas entre as minhas pernas. Pedi que ficasse calmo e descemos o morro abraçados. Pensando que estava me sentindo mal, os policiais abriram caminho e até se ofereceram para me ajudar ¿ disse Teresinha, tentando encontrar uma justificativa: ¿ Não foi a primeira vez. Fiz o que achei que era certo. Vi esses meninos crescerem.

Elas ganham recompensa pelo trabalho de proteção

Mas a colaboração tem um preço: elas recebem dinheiro e a proteção do chefe do morro. A maioria consegue sustentar a família com o que ganha do tráfico. Em contrapartida, podem assumir tarefas perigosas, como transportar drogas e celulares para os que estão presos.

¿ Às vezes, me sinto uma mãe para eles. Muitos não têm família. Não poderia deixar de ajudar alguém que conheço desde pequeno. Você vai virar as costas só porque deram um passo errado? Não peço dinheiro, eles me dão algo depois, que é sempre bem-vindo ¿ diz Conceição, de 58 anos.

Moradora de uma favela em Niterói, Conceição abre as portas da sua casa para os jovens que deixam a prisão e não conseguem o apoio das suas famílias. Mesmo contrariando seus filhos, ela já chegou a hospedar por mais de um ano dois rapazes, que passaram a ser tratados como integrantes da família. Dividiam as roupas e a comida da casa com os cinco filhos de Conceição.

¿ Minhas filhas me chamavam de maluca, ficavam preocupadas. Mas eles me procuravam, um falava para o outro que eu os ajudava. Começava oferecendo comida, depois deixava eles dormirem na minha casa. Já cuidei até de um garoto baleado. Eles já me protegeram de um cunhado violento e até deixaram eu viver numa casa abandonada ¿ afirmou Conceição, lembrando que alguns jovens voltavam para o tráfico: ¿ Acredito que, se tivessem a consideração e o carinho da família, poderiam seguir outro caminho. Pediam desculpas por estar na minha casa. Sentavam e choravam muito.

As ¿tias¿ observam o movimento no morro

Vigiar a favela também faz parte do dia-a-dia das ¿tias¿. De casa, observam o entra-e-sai do morro, sempre atentas à aproximação da polícia. Se for preciso, elas chegam a assumir que são mães dos falcões. Foi o caso de Rita, de 34 anos, que salvou um jovem da prisão numa favela da Zona Norte. Ela chegou em casa no momento em que a polícia abordava o traficante e alegou que era seu filho que saía para trabalhar. A arma havia sido escondida.

¿ Aqui não tem como não ajudar. Não é nada demais guardar alguma coisa (armas ou drogas) quando pedem. Não vejo mal em ganhar dinheiro por isso. Para quem vive na favela, eles são um tipo de segurança. Nossa segurança vem de Deus, mas aqui na terra são eles.

Muitas não chegam a se envolver diretamente com tráfico, mas vivem com o dinheiro do crime. São as ¿tias¿ do lanche, que circulam pelas madrugadas vendendo comida para aqueles que ficam na segurança da boca-de-fumo.

¿ Teve um dia que eu vim aqui e vi um carro mandando bala. Joguei a bicicleta e fiquei abaixada. Esperei o tiro acabar e voltei para a luta. Quem ficou tinha que trabalhar, comer para trabalhar de barriga cheia ¿ contou uma ¿tia¿, retratada no livro de Celso Athayde e MV Bill, que será publicado segunda-feira.

* Do Extra

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