Título: Um escárnio com a Justiça brasileira
Autor: Brígido, Carolina; Braga, Isabel
Fonte: O Globo, 01/11/2007, O País, p. 8

Cunha Lima, que deu tiro no rosto de adversário, renuncia ao mandato de deputado para evitar julgamento no STF.

BRASÍLIA. Às vésperas de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de homicídio, o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB) renunciou ao mandato para escapar de uma eventual condenação. O parlamentar atirou em seu adversário político Tarcísio Burity, em 5 de dezembro de 1993, num restaurante em João Pessoa, diante de várias testemunhas. Depois de 12 anos tramitando na mais alta Corte do país, o processo seria concluído na próxima segunda-feira, conforme previsto na pauta de julgamentos do STF. A atitude de Cunha Lima deixou revoltado o relator do caso, ministro Joaquim Barbosa.

Com a renúncia, o tucano deixa de ter foro privilegiado no STF, e o processo volta para a primeira instância, na Paraíba. Cunha Lima, de 71 anos, ganhará tempo com os trâmites processuais. Não há mais previsão de conclusão do caso.

- Tivemos um esforço enorme para colocar este processo em pauta. O ato dele é um escárnio para com a Justiça brasileira. Durante 14 anos, o deputado usou todas as chicanas processuais para escapar da Justiça. Ele tem direito de renunciar, mas é evidente a segunda intenção de impedir que a Justiça funcione. O processo vai para a primeira instância e vai durar pelo menos mais dez anos. Vai começar do zero. Espero que haja juízes corajosos e independentes na Paraíba para julgá-lo - disse o ministro.

"Tem que acabar com isso "

O réu não nega a autoria dos disparos, mas alega legítima defesa da honra. Se fosse julgado e condenado, Cunha Lima poderia ser o primeiro sentenciado pelo STF, que não registra em sua história nenhuma condenação. Para Joaquim Barbosa, a responsabilidade por esse dado é do foro privilegiado, que deixa os tribunais superiores lotados, embora não haja estrutura suficiente para tantos processos.

- Isso mostra o quanto é perverso o foro privilegiado. Tem que acabar com isso no Brasil - protestou o ministro.

Outro ministro, Marco Aurélio Mello, defendeu o fim do foro especial, mas ressaltou que a renúncia é direito parlamentar.

- Sou favorável ao tratamento igualitário. Não vejo como termos um foro privilegiado. A renúncia é um ato de vontade. Se o objetivo oculto foi escapar da Justiça, ocorreu de um ato legítimo - disse Marco Aurélio.

Na Câmara, colegas tucanos enviaram à Secretaria Geral carta de renúncia de Cunha Lima, lida na abertura da sessão de ontem. Nela, Cunha Lima afirma que renunciou para ser julgado pelo povo da Paraíba. Disse que estava renunciando ao foro privilegiado. "Renuncio ao mandato de deputado federal, representando o povo da Paraíba, a fim de possibilitar que esse povo me julgue, sem prerrogativa de foro, como um igual que sempre fui ", disse na carta.

Lida pelo líder do PSDB, Antonio Pannunzio, a carta de Cunha Lima destaca que Burity o perdoou, antes de morrer em 2003, o que permitiu estabelecer a paz entre os dois. "Mas até para me reconciliar comigo mesmo e com minha história devo enfrentar, diante de meu próprio povo, toda a dor dessa circunstância", disse o tucano.

O caso de Cunha Lima chegou ao STF em junho de 1995. Em 2002, a Corte aceitou a denúncia e abriu ação penal. Em sua defesa, Cunha Lima afirmou que Burity já o ameaçara de morte e, no restaurante, deu indícios de que iria atacá-lo.

Em 2006, Cunha Lima, pai do atual governador da Paraíba, o também tucano Cassio Cunha Lima, elegeu-se deputado federal. Com a renúncia, assumirá a vaga na Câmara Walter Correia de Brito Neto, do DEM.