Título: Mais um passo escuridão adentro
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Fonte: O Globo, 06/11/2007, O Mundo, p. 27

Para qualquer pessoa que conheça a história do Paquistão a decisão dos militares de impor um estado de emergência não causa surpresa. A lei marcial no país se tornou um antibiótico: para se obter os mesmos resultados é necessário ficar dobrando a dose. Isto foi um golpe dentro de um golpe.

O general Pervez Musharraf governou o país com uma fachada civil, mas a base de seu poder era limitada pelo Exército. E foi o chefe de Estado Maior do Exército que declarou a emergência, suspendeu a Constituição de 1973, tirou todos os canais de TV do ar, interferiu nas redes de telefonia móvel, cercou a Suprema Corte, demitiu o presidente do supremo tribunal, prendeu o presidente da associação de advogados e inaugurou mais um período roto na história do país.

Por quê? Porque temiam que a decisão da Suprema Corte tornasse impossível a eleição de Musharraf. A decisão de suspender a Constituição foi tomada algumas semanas atrás. De acordo com uma fonte, ao contrário do que tem dito, Benazir Bhutto foi previamente informada e decidira deixar o país. (Se o seu ¿retorno dramático¿ também foi pré-combinado ainda se está por saber.) Intoxicada pelo aroma do poder, ela deve agora descobrir que ele continua esquivo como sempre foi. Se ela apoiar os últimos acontecimentos, será um ato de suicídio político. Se decidir abandonar o general (ela o acusou de quebrar promessas), estará traindo a confiança do Departamento de Estado dos EUA.

As duas instituições alvo do estado de emergência são o Judiciário e os meios de comunicação, muitos dos quais transmitem informações que os políticos nunca fornecem. Geo TV continua a transmitir fora do país. Hamid Mir, um de seus mais afiados jornalistas, disse ontem acreditar que a embaixada dos EUA deu luz verde ao golpe porque via o presidente do Supremo como ¿um simpatizante do Talibã¿.

O regime tem sido confrontado com uma séria crise de legitimidade, que começou no início do ano com a decisão de Musharraf de suspender o presidente da Suprema Corte, Iftikhar Hussain Chaudhry, provocando manifestações que duraram seis meses e forçaram o governo a recuar. Algumas das decisões de Chaudhry desafiaram o governo em questões cruciais como ¿prisioneiros desaparecidos¿, assédio a mulheres e privatizações apressadas. Temia-se que ele declarasse ilegal um presidente fardado.

A luta para pressionar por uma separação dos poderes entre o Estado e o Judiciário, que sempre foi fraco, era de importância crítica. Os juízes paquistaneses em geral são condescendentes. Aqueles que resistem a líderes militares são logo forçados a sair, logo a decisão deste juiz foi surpreendente, extremamente importante e lhe valeu enorme respeito. A cobertura da imprensa internacional sugere que o Paquistão é um país de generais, políticos corruptos e lunáticos barbados. A luta para reinstalar o presidente do Supremo mostra uma visão diferente do país.

A declaração da Suprema Corte de que a nova dispensa era ¿ilegal e inconstitucional¿ foi heróica e, por outro lado, o novo presidente do tribunal rapidamente empossado será visto como realmente é: um boneco dos homens de farda. Se a Constituição for mantida em suspenso por mais de três meses, então Musharraf poderá ser posto de lado pelo Exército e um novo homem forte será instalado no cargo. Ou o objetivo pode ter sido apenas limpar a Suprema Corte e controlar a mídia. Nesse caso, uma eleição manipulada em janeiro se torna uma certeza.

Qualquer que seja o caso, a longa jornada do Paquistão rumo ao fim da noite continua.

TARIK ALI é escritor paquistanês e escreveu este artigo para o Independent