Título: O outro lado da CPMF
Autor: Pochmann, Marcio
Fonte: O Globo, 08/11/2007, Opinião, p. 7

A discussão proposta até o momento sobre a CPMF produz muito calor, porém, lança poucas luzes sobre as enormes ineficiências e injustiças praticadas pelo atual regime tributário no Brasil.

Percebe-se, por exemplo, que, em geral, as questões formuladas sobre a CPMF - em torno do aumento na carga tributária, do caráter cumulativo da cobrança, da inércia frente à progressividade e de sua parcial aplicação na saúde - são de uma pobreza franciscana.

Como atribuir tanta responsabilidade a um tributo que respondeu em 2006 a apenas 4% do total da carga tributária bruta do país? Além disso, no primeiro governo Lula, o crescimento real da CPMF foi de 14,5%, bem menor que o aumento da carga tributária no período, que foi de 22,6%, e menor ainda que o aumento de 26,2% na carga tributária durante o segundo governo FHC, de 1999 a 2002. Inferior também ao aumento da receita de tributos estaduais e municipais como a do IPVA (+28,5%), do ICMS (+18,3%) e do ISS (+41,1%).

Quanto ao fato de a CPMF ser um tributo proporcional à renda, claro que o ideal seria que os mais ricos pagassem mais. Mas, diante da estrutura regressiva da tributação brasileira, ser pelo menos proporcional já soa como aspecto positivo. Afinal, vive-se uma enorme regressividade de impostos, que oneram mais os pobres que os ricos. Vamos aos números: para os 10% mais pobres da população, o peso da tributação equivale a 32% do rendimento. Enquanto que na outra ponta da pirâmide, para os 10% mais ricos, a carga tributária chega a 21% da renda. Ou seja, um terço do salário dos mais pobres é engolido pelos impostos, enquanto os ricos sofrem uma mordida bem mais mansa, de apenas um quinto dos rendimentos.

Nesse sentido, valeria muito mais a discussão a respeito da escassez de tributos sobre riqueza e herança, bem como sobre as debilidades dos tributos diretos e indiretos no país. Por exemplo, como pode o tributo nacional sobre a terra perder 29,4% da receita, em termos reais, de 1999 a 2006?

Por fim, é importante o questionamento sobre a flexibilidade no uso da CPMF para outros fins que não a saúde. Mas valeria, certamente, muito mais uma discussão a respeito da DRU (Desvinculação das Receitas da União), que ceifa 20% da receita vinculada. Esse iníquo mecanismo retira recursos da área social, bem como permite que o superávit fiscal seja formado com quase 2/3 dos recursos provenientes da educação, saúde, trabalho, entre outras áreas sociais.

O debate contemporâneo dos desafios enfrentados pela sociedade brasileira exigirá não apenas o foco na CPMF, mas em todo o sistema tributário nacional, especialmente sobre sua eficiência e justiça. Frente a isso, entende-se que a CPMF condiz com uma forma moderna e portadora de futuro em termos de tributação e arrecadação.

Ao contrário dos demais tributos, a aplicação da CPMF independe da declaração do contribuinte, como o IR (Imposto de Renda), e preenchimentos de guias (ICMS, ISS, entre outros), assim como apresenta baixa exigência de fiscalização, que nem sempre consegue evitar a sonegação. Portanto, seus custos administrativos são relativamente muito baixos.

Da mesma forma, a CPMF representa uma inegável contribuição ao sentido da isonomia de competição, pois se trata de tributação que atinge todos os submetidos à intermediação financeira. Nesse sentido, reduz consideravelmente o "jeitinho" do uso da sonegação tributária como medida de competição no interior do sistema econômico nacional.

Se forem consideradas ainda as novas modalidades de produção e distribuição de bens e serviços, percebe-se o anacronismo que tendem a se tornar as formas tradicionais de tributação e arrecadação no Brasil. Com o tamanho da informalidade, da sonegação e da regressividade, pode-se compreender por que a CPMF enfrenta tanta resistência em persistir no sistema tributário nacional.

Na realidade, o debate que interessa mesmo, a construção de um país moderno e justo, deveria ser o de rebaixar alíquotas e tributos atrelados à estrutura produtiva e arrecadatória ainda do século XIX. Dessa forma, a CPMF poderia passar a ser justamente elevada, ao invés da atual visão predominante de reduzi-la ou, até mesmo, de extingui-la. Por que será que isso não ocorre no Brasil?

MARCIO POCHMANN é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).