Título: A verdadeira face do regime
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Fonte: O Globo, 10/11/2007, O Mundo, p. 51

LAHORE, Paquistão. Era quase meia-noite no último sábado, quando o general Pervez Musharraf finalmente apareceu na televisão estatal. Nesse momento as vans da polícia cercavam minha casa. Fui avisada para não sair e, horas mais tarde, descobri que seria presa por 90 dias. Pelo menos, tenho o luxo de permanecer em casa, embora não possa ver ninguém. Posso apenas, impotente, testemunhar o desdobramento desse terror.

O governo de Musharraf declarou lei marcial para acertar as contas com juízes e advogados. Centenas de paquistaneses inocentes foram detidos. Ativistas de direitos humanos, inclusive mulheres e idosos, foram agredidos pela polícia. Juízes foram presos e advogados, espancados em seus escritórios e nas ruas. Estes cidadãos são nossos verdadeiros valores: jovens, progressistas e cheios de espírito. Muitos deles foram preparados para lutar pela lei e estão sendo brutalizados por defenderem a Justiça.

Musharraf justifica as medidas draconianas afirmando que usa seu poder para lutar contra os terroristas que atuam no país. Porém, no dia seguinte após ter declarado estado de emergência, o jornal ¿Dawn¿ disse que suspeitos de terrorismo foram libertados pelo governo.

Musharraf disse que a militância islâmica no Paquistão cresceu por causa da interferência do Judiciário na administração. No entanto, até março passado, o Judiciário havia atendido a todas as demandas do Executivo. O que há de democrático num Judiciário que não é independente? Nos últimos dias, a polícia invadiu a residência do presidente da Associação do Fórum da Suprema Corte ¿ sua mulher teve que fugir ¿ e os escritórios jurídicos de dois ex-presidentes do Fórum. Seus secretários foram agredidos.

A comunidade internacional está alarmada com as ações de Musharraf, mas os paquistaneses já esperavam por isso. O governo Bush via o general como moderado e benigno, mas a verdadeira face desse regime foi exposta.

Uma imagem mais real do Paquistão começou a emergir nas últimas semanas. Milhares foram às ruas dar as boas-vindas a Benazir Bhutto, após seu retorno no mês passado; os paquistaneses foram progressistas o suficiente para elegerem uma mulher como líder política anos atrás. Centenas de advogados de espírito progressista fizeram marchas em defesa de valores democráticos. Eu endosso o clamor de Benazir para que o Partido do Povo do Paquistão engrosse as manifestações.

O Paquistão é ameaçado por militantes islâmicos, e nossa sociedade civil sofre com o pior dessa terrível talibanização. Infelizmente, o regime de Musharraf nem tenta nem consegue inverter essa tendência. A promessa de Musharraf de realizar as eleições marcadas para 15 de fevereiro ou deixar o Exército são cortina de fumaça. Ele já havia prometido antes tirar o uniforme e não foi adiante. Qualquer eleição realizada nestas circunstâncias não serão livres e apenas adiarão a crise. E mais: a militarização vai matar o espírito das forças progressistas ao mesmo tempo em que incentivará a moral terrorista.

Uma transição para a democracia é crucial, mas a não ser que sejam restauradas a liberdade de imprensa e a independência do Judiciário, qualquer mudança perde o efeito. Será difícil pôr o Paquistão no caminho da democracia, mas precisamos começar agora, antes que seja tarde.

ASMA JAHANGIR é advogada paquistanesa sob prisão domiciliar em Lahore e preside a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão. Ela escreveu este artigo para o ¿Washington Post¿