Título: O conflito dos sem-terra
Autor: Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 12/11/2007, O País, p. 3

Governo cria núcleo para conter violência entre os próprios movimentos sociais no campo.

Olatifúndio improdutivo e os grandes ruralistas já não são os únicos inimigos dos sem-terra. Agora, os assentados da reforma agrária estão brigando entre si, num conflito que põe em pé-de-guerra e de lados opostos os principais movimentos sociais do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf). Os beneficiários da reforma agrária disputam, principalmente, os lotes das áreas desapropriadas pelo governo.

A guerra entre os assentados envolve ainda disputa pelo comando de assentamentos, rixas entre movimentos opostos e denúncias de corrupção na coordenação dessas áreas. São problemas que têm levado à retirada de famílias ameaçadas dos assentamentos, brigas internas e até homicídios.

O conflito agrário entre assentados já preocupa o governo. Há 15 dias, foi criado um grupo de trabalho para encontrar soluções para conter a violência entre eles. Na portaria publicada no Diário Oficial da União, o Ministério do Desenvolvimento Agrário admite que esses rachas têm chegado ao extremo, o assassinato de assentados. "Esses conflitos geram instabilidade nos projetos de assentamento, propiciando situações de animosidade entre os trabalhadores rurais assentados, inclusive com possibilidade de agressões físicas e até homicídios", diz o documento do governo.

A Ouvidoria Agrária Nacional vai coordenar esse grupo. A portaria prevê o "remanejamento de famílias expostas a situações de instabilidade". Foi o que ocorreu no assentamento Terra Vista, em Arataca, na Bahia. O embate ali envolveu MST versus MST. Vinte famílias dissidentes foram obrigadas a deixar o local por discordar da forma de exploração do projeto. O Incra teve que desapropriar outra terra, em Nova Galícia, e acomodar esse grupo. Essas famílias tiveram que deixar suas roças e benfeitorias.

MST ligado a quase todos os conflitos

O ouvidor agrário, Gercino José da Silva Filho, afirma que esses desentendimentos provocam prejuízos para quem tem que deixar tudo para trás.

- É uma situação que preocupa muito. Não há recursos, hoje, para essas despesas. Essas pessoas querem garantia de sobrevivência e, até agora, não há como indenizá-las - disse Gercino.

O ouvidor explicou que, com a criação desse grupo, o governo irá destinar recursos para esses gastos. Gercino afirmou que a família é removida e, até virar assentada novamente, volta à condição de acampada, vivendo embaixo da lona e dependendo de cesta básica.

Principal movimento na luta pela reforma agrária, o MST está envolvido em quase todos os conflitos entre assentados. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Manoel José dos Santos, acusa o MST de ser o vilão dessa história. Ele afirmou que o adversário não respeita quem montou primeiro o acampamento próximo da área a ser desapropriada.

- Um grupo chega à área, acampa, reivindica a desapropriação junto ao Incra, que inicia a vistoria. Aí, vem o pessoal do MST e tenta tomar o acampamento desse outro movimento. É um problema muito sério - disse Manoel.

O presidente da Contag citou um exemplo de conflito que ocorre neste momento: a Usina de Catende, em Pernambuco, onde funciona a autogestão de trabalhadores de vários movimentos. Fora desse empreendimento, o MST já ocupou a terra quatro vezes. Hoje, há militantes do MST dentro dessa área.

- Nós, dos movimentos sociais, já temos inimigos demais. Não deveríamos brigar entre a gente - afirmou o dirigente da Contag.

A coordenadora de Reforma Agrária da Fetraf, Maria da Graça Amorim, por sua vez, critica o MST e a Contag de investirem contra suas terras. Graça reconhece que há problemas no interior dos assentamentos, e os atribui às dificuldades de relacionamento.

- Nos assentamentos, tem gente de toda natureza, com costumes, crenças e religiões diferentes. Tem gente que briga com o outro porque o porco fuça na roça dele. Porque, em vez de criar bode, cria boi. Não é fácil construir a coletividade - admite Maria da Graça.

A diretora da Fetraf apontou como problema a demora do governo em criar infra-estrutura e condições de plantio para os assentados, que ficam parados, no assentamento, até que essas condições sejam garantidas. Segundo ela, para alguns deles, a vida no acampamento era melhor que a de assentado:

- O governo assenta, mas leva dois anos para instalar a casa e garantir o crédito. Isso tudo gera ociosidade, e mente desocupada é oficina do satanás.

O GLOBO procurou a direção do MST por intermédio de sua assessoria de imprensa. Foi informado de que seus dirigentes não iriam comentar os conflitos entre assentados nem as críticas da Contag e da Fetraf.

Um dos líderes da bancada ruralista, Abelardo Lupion (DEM-PR), atribui essa disputa entre movimentos a tendências políticas.

- Isso é briga por terra e dinheiro. É preciso impor regras para esse pessoal, que não se mata só entre eles, mas atinge também outras pessoas, que não têm nada a ver com a história - acusou Lupion.

Para o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), ex-ministro do Desenvolvimento Agrário do presidente Fernando Henrique (PSDB), a culpa é do governo, que não seleciona devidamente os beneficiários do programa:

- O processo de seleção de famílias foge ao controle. Todo mundo quer terra e acesso ao orçamento público. E essa briga está gerando morte. É preciso harmonizar.