Título: Norman Mailer, 84, autor maior que a vida
Autor: Conde, Miguel
Fonte: O Globo, 11/11/2007, O Mundo, p. 47A

Mais ambicioso intérprete da cultura americana no século XX, escritor brigão e narcisista fez dos EUA seu tema.

montagem da capa da ¿Time¿, em 1973: o perfil biográfico da atriz desagradou os críticos e foi considerado um fracasso pelo próprio escritor

escrever sobre JFK, escritor projetou nele suas próprias pretensões

Miguel Conde

Em sua escrita, tanto quanto em sua vida, Norman Mailer foi um cultor da desmedida, do grandioso, do excesso. Dos escritores americanos surgidos no pós-guerra, foi ele o mais imbuído do sentimento de singularidade do próprio país. O mito do ¿american exceptionalism¿, que no século XIX alimentara movimentos patrióticos, em Mailer ganhou um sentido literário: o país como um repositório de drama, tragédia e insanidade em níveis até então desconhecidos pelo homem. ¿Shakespeare seria pequeno diante da América¿, ele escreveu no prefácio de ¿O super-homem vai ao supermercado¿ (Companhia das Letras), reunião de reportagens sobre a política americana. Os Estados Unidos foram seu grande tema, e uma síntese da experiência americana sua ambição maior como artista.

Se em algum momento Mailer chegou perto de realizar este projeto, não foi em seus romances, mas naquilo que os americanos chamam, cartesianamente, de ¿escrita de não-ficção criativa¿. ¿Degraus do Pentágono¿ (1968) e ¿A luta¿ (1975), seus livros mais notáveis neste gênero, são condensações poéticas e monumentais das décadas de 1960 e 1970, respectivamente. Neles, nada é casual. Tudo está tomado pela força da História. Os hippies, os ativistas, os intelectuais e artistas engajados, as certezas e esperanças da esquerda liberal, seu antagonismo com o ¿complexo militar-industrial¿ (em ¿Degraus do Pentágono¿), a cultura de celebridades, a degeneração da liberdade dos sentidos numa bad trip, a grandiloqüência filistina do show business (em ¿A luta¿) são ordenados num conjunto coerente, onde cada detalhe está ligado ao outro e todos incorporam e manifestam a exaltação ao mesmo tempo orgiástica e paranóica de ambas as décadas (um narcisista admitido, Mailer fez de si mesmo o protagonista dos dois livros).

¿Nunca trabalhei como jornalista¿

O ponto cego dessas duas obras, a vida política partidária dos EUA, foi examinada por Mailer em reportagens depois reunidas em ¿O super-homem vai ao supermercado¿. Nessas incursões pela história ¿concreta, factual, prática e incrivelmente aborrecida¿ do país, Mailer encontrou um personagem que transformaria em projeção de suas próprias pretensões: John F. Kennedy. Visto por Mailer, JFK era um ponto de contato entre o mundo entediante, previsível, da política e a ¿segunda vida americana¿, ¿aquela concentração de êxtase e violência que é a vida onírica da nação¿. O homem que poderia curar os EUA de sua esquizofrenia, colar os pedaços de seu ego fraturado. Impossível não lembrar da própria candidatura de Mailer a prefeito de Nova York, em 1969.

Sempre citado como um dos criadores do ¿new journalism¿, Mailer escreveu: ¿Nunca trabalhei como jornalista, e não gosto dessa profissão. É um modo promíscuo de ganhar a vida.¿ Sua escrita jornalística revelava mais interesse pelo insondável do que por circunstâncias objetivas. Uma certa elevação do ânimo era indispensável ao trabalho de Mailer. Ele buscou suas explicações sobre personagens e eventos históricos em êxtases divinatórios. Para ele, o desvendamento dos sentidos implícitos num fato ou situação dependia menos de um método racional do que de uma ligação intuitiva com o inconsciente ¿ o seu próprio ou o do país. Por isso, sua figura literária preferida foi a metáfora, esclarecimento que preserva algo de imponderável. Essa escrita um tanto xamanística resultava de uma visão de mundo com um forte componente místico. Em suas entrevistas, Mailer se definiu como um existencialista heterodoxo, que acreditava numa disputa constante entre Deus e o diabo pela lealdade da Humanidade. Uma visão que ¿restabelece uma certa dignidade à opção moral¿, disse, porque ¿passa a ser importante ser bom ou mau¿.

A entrada de Mailer na vida literária se deu em 1948 com o sucesso estrondoso de seu livro de estréia, ¿Os nus e os mortos¿, romance baseado em sua experiência na Segunda Guerra Mundial. É até hoje considerado um clássico da literatura americana, ainda que não seja dos clássicos mais lidos. Durante os anos 1950, foram seus ensaios sobre o país que fizeram de Mailer uma figura central da sociedade americana. Sua ficção, onde a busca do pathos americano assumia cada vez mais uma forma alegórica, teve uma recepção crítica divida. Em 1955, ele foi um dos fundadores do ¿Village Voice¿, que seria um dos epicentros da revolução contracultural dos anos seguintes. Dos 1950 aos 2000, Mailer permaneceu um intelectual engajado e um intérprete original das convulsões e mudanças da vida americana.

Prêmios Pulitzer por reportagens

Mailer recebeu dois prêmios Pulitzer, um por ¿Degraus do Pentágono¿ e outro por ¿A canção do carrasco¿, sua longa reportagem sobre o julgamento e execução de Gary Gilmore por assassinato. Um polemista nato, acumulou desavenças, muitas vezes iniciadas a reboque de bebedeiras dignas de seu herói Ernest Hemingway (a maconha, porém, era a droga que ele dizia ter sido fundamental em seu amadurecimento). Em 1966, durante uma festa organizada por Truman Capote, Mailer chamou um dos assessores do então presidente Lyndon Johnson para a briga, por causa da política do governo no Vietnã. Em 1977, numa outra festa, deu um soco em Gore Vidal, que tinha ironizado seus livros. Os dois se reconciliaram em 1985. O episódio mais infame de sua biografia é provavelmente o ataque à sua segunda mulher, Adele Morales. Durante (mais) uma festa em 1960, ele a esfaqueou com um canivete. Adele se recuperou do ataque e perdoou Mailer, mas o casal se divorciou dois anos depois. Recentemente, num encontro com o alemão Günter Grass, Mailer disse acreditar que por causa desse incidente não ganhou o Nobel de Literatura.

Mailer se casou seis vezes e teve nove filhos. Gostava de anunciar nas entrevistas que precisava ganhar US$400 mil por ano só para pagar as pensões alimentícias. Dizia também que ¿enganou todas as mulheres que amou¿, e que gostava ¿de estar casado com uma mulher em quem eu possa bater de vez em quando, mas que contra-ataque¿. Em 1971, Mailer participou em Nova York de um debate histórico sobre liberação feminina com Germaine Greer, Diana Trilling, Jacqueline Ceballos e Jill Johnston, no qual foi quase expulso do palco por uma platéia composta majoritariamente de feministas, entre elas Susan Sontag e Betty Friedan. Johnston, crítica de dança e autora de ¿Nação lésbica¿, beijou duas mulheres que subiram da platéia para cumprimentá-la, enfurecendo Mailer: ¿Seja uma dama¿, protestou. Uma das antagonistas mais constantes de Mailer foi a crítica Michiko Kakutani, do ¿New York Times¿, que invariavelmente devastava os livros do autor em suas resenhas. Mailer disse que a correção política impedia o jornal de demitir uma ¿feminista asiática¿.

O último livro de Mailer é o romance ¿The castle in the forest¿, uma história sobre a infância de Adolf Hitler narrada do ponto de vista de um demônio. O livro sairá no Brasil em dezembro pela Companhia das Letras.

Nascido em 31 de janeiro de 1923, filho de um contador com uma dona de casa, Mailer cresceu no Brooklin, em Nova York, e estudou em Harvard. Fez parte da geração de autores judeus que dominaram a literatura americana na segunda metade do século XX, entre eles Bernard Malamud, Saul Bellow, Isaac Bashevis Singer e Philip Roth. Além de romancista, foi contista, ensaísta, jornalista, cineasta, ator, político e biógrafo de Picasso e Marilyn Monroe. Morreu ontem, aos 84 anos, de falência renal, no hospital Monte Sinai, em Nova York.