Título: Mortes invisíveis no trabalho
Autor: Almeida, Cássia
Fonte: O Globo, 18/11/2007, Economia, p. 31

ESTATÍSTICAS EM XEQUE

Número real de acidentes fatais no país é o triplo do que os dados oficiais mostram

"Mãe, se eu morresse hoje, e Deus me perguntasse se eu queria voltar, só voltaria se fosse como sua filha. E agora te dou um presente. Um neto. Você é a primeira a saber que estou grávida de um mês". Essas foram as últimas palavras que Zoraide Vidal ouviu da filha, a policial civil Ludmila Fernandes Fragoso, no dia 4 de agosto do ano passado. A próxima notícia que receberia da filha seria a da sua morte num assalto.

Apesar de ter morrido ao voltar do trabalho, após ser espancada e baleada e ter o corpo queimado junto com o carro por ser policial, a morte de Ludmila não entra nas estatísticas oficiais brasileiras de morte no trabalho. Servidores públicos como policiais, professores e médicos estão fora das estatísticas. Assim como os trabalhadores informais, que somam cerca de 50% da população ocupada. Os dados da Previdência Social dão conta de 2.717 mortes no ano passado. Um número que já seria por si só alarmante, pois significa uma morte a cada três horas. Mas o quadro é muito mais grave. Morrem no Brasil, por ano, no mínimo 8.151 trabalhadores, o triplo do que as estatísticas oficiais conseguem captar, ao se incluir essa população de servidores e de informais. Ou seja, uma morte por hora.

As contas são da doutora em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Letícia Nobre, que também constatou o impacto da violência urbana e do trânsito nas mortes de trabalhadores. De 648 mortes por causas externas pesquisadas em Salvador, em 2004, 25% foram consideradas acidentes de trabalho, disfarçadas de homicídios e acidentes de trânsito.

Trabalhador é vítima da violência urbana

Essa brutal diferença entre os números oficiais e os verdadeiros estão na forma de se contabilizar os acidentes no Brasil. Somente os empregados com carteira assinada entram nas estatísticas da Previdência. A lógica é financeira. Como só as empresas pagam o Seguro de Acidente de Trabalho (SAT), somente os trabalhadores celetistas entram nas estatísticas.

- Esses trabalhadores não têm visibilidade social. São vítimas de violência urbana e morrem completamente anônimos. Ninguém sabe que morreu, nem que morreu trabalhando. É uma invisibilidade social muito grande - alerta Letícia Nobre, que também é diretora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador da Secretaria de Saúde da Bahia.

Essa invisibilidade escondeu o drama vivido pela família do camelô Daniel Soares Dias. Em 2004, sentado em sua banca de doces em frente a um supermercado na Penha, foi alvejado no peito. De repente, viu-se no meio de um tiroteio entre polícia, seguranças do supermercado e assaltantes, ficando no fogo cruzado. Morreu aos 40 anos. Até hoje a mãe, Ruth Soares Dias, resiste a falar do assunto. No mesmo ano, logo após a morte do filho, perdeu a nora, vítima de câncer, e o marido, de infecção.

- Não quero falar sobre isso. Traz de volta todo o sofrimento.

Taxa é 10 vezes maior que a de países ricos

O irmão Rogel Soares Dias conta que Daniel nunca teve carteira assinada. Era vendedor. Começou vendendo as roupas que a mulher fazia. O câncer a impediu de trabalhar na máquina. Ela passou, então, a fazer doces, que o marido também vendia. Resistiu menos de quatro meses após a morte de Daniel, com quem estava casada há mais de dez anos:

- Foi muito difícil para todos nós. Perdemos três pessoas praticamente ao mesmo tempo. O que nos conforta é Deus. Esquecer, nunca.

Considerando só os dados oficiais, a taxa de mortalidade no trabalho no Brasil chega a ser quase dez vezes maior que a de países desenvolvidos. Enquanto morriam no Brasil 11,45 trabalhadores por cem mil com carteira assinada em 2004, na Suécia, a taxa era de 1,4. Na Austrália, era de 2. O Brasil se aproxima do México, cuja taxa é de 11 mortes. Nos EUA, morrem quatro trabalhadores em cem mil por ano.

Se, no caso das mortes, que são mais difíceis de esconder, as estatísticas não mostram dois terços das ocorrências, nos acidentes não fatais, a situação é bem mais grave. Em 2006, pelos dados recentes da Previdência, foram 503.890 casos. Nas contas da pesquisadora da UFBA, esse número é de 6,1 milhões de acidentes. E a subnotificação atinge o trabalhador com carteira. Acidentes sem afastamento do trabalho ou abaixo de 15 dias de licença quase não são notificados.