Título: A junta de Mianmar não quer ficar isolada
Autor: Martins, Marília
Fonte: O Globo, 21/11/2007, O Mundo, p. 30

Relator de direitos humanos da ONU, Paulo Sérgio Pinheiro diz que situação no país asiático é crítica

NOVA YORK. Paulo Sérgio Pinheiro voltou apreensivo de Mianmar. Para o relator de direitos humanos da ONU, piorou muito o tratamento dado aos presos políticos, que ele calcula serem 1.200 apenas na principal prisão do país. Diz que há relatos de tortura - sobretudo maus-tratos e privação de sono - e que as condições das celas são extremamente insalubres. A junta militar acusa os presos de terrorismo e associação a uma conspiração internacional para desestabilizar politicamente o país. Pinheiro apresentará seu relatório em 11 de dezembro, em Genebra. Nesta entrevista exclusiva ao GLOBO ele dá detalhes de sua recente visita ao país dos monges.

Marília Martins

Como está a situação de direitos humanos em Mianmar?

PAULO SÉRGIO PINHEIRO: O desrespeito aos direitos humanos é total. Trata-se de uma ditadura militar violenta, que mantém a população em regime de medo, sem qualquer resquício de liberdade de expressão. Visitei a maior prisão do país, obviamente superpovoada para as instalações sofríveis, com dez mil presos. Vi que ali há pelo menos 1.200 presos políticos. A junta militar reconhece apenas 92, mas há muito mais. A maioria é de estudantes, muitos têm por volta de 40 anos e fazem parte dos movimentos de oposição. Agora, por causa da repercussão internacional, os presos políticos ganharam notoriedade e são mais bem tratados que os presos comuns. Mas a condição geral do presídio é um horror. O único consolo é que, apesar de haver pena de morte, Mianmar tem tido uma moratória de fato nas execuções porque não há relato de prisioneiros executados desde os anos 80.

E quanto aos mortos?

PINHEIRO: Bem, não é possível determinar ainda quantos foram mortos durante a repressão às manifestações de rua contra o regime. A junta militar reconhece apenas 14 mortos, e me forneceram os exames de necrópsia, já que em Mianmar os mortos são incinerados. Mas recebi relatos de muito mais. Conversei com muitos prisioneiros com inteira privacidade. Cheguei a fazer um exame nas celas para ver se havia dispositivos de gravação, e aparentemente tive alguns minutos de isolamento com os prisioneiros que entrevistei. Os detalhes dos depoimentos dos presos estarão no meu relatório sobre o desrespeito aos direitos humanos em Mianmar, que será apresentado no dia 11 de dezembro em Genebra.

Além dos depoimentos dos presos, quais são as suas fontes no relatório?

PINHEIRO: Conversei também com ONGs de defesa de direitos humanos, com membros dos partidos de oposição, com estudantes, e com alguns monges. Foram cinco dias de muito trabalho, muitos encontros. Há bastante medo nas ruas, tanto na antiga capital, Rangun (atualmente Yangon), quanto na nova capital, Naypydaw. Quase todo o tempo fui acompanhado por pessoas do governo, que queriam verificar onde eu ia e o que estava fazendo. Então tenho que ter muito cuidado para não expor todas as minhas fontes.

O senhor se encontrou com a líder da oposição, Aung San Suu Kyi?

PINHEIRO: Não. Ela havia tido encontros com outro representante da ONU, que esteve lá antes de mim. Estamos todos preocupados com o estado de saúde dela, mas a junta militar não me permitiu refazer o roteiro do meu antecessor, de modo que fiquei impossibilitado de vê-la. Eles temiam que eu fosse fazer o papel de mensageiro de entidades internacionais. Então volto sem ter tido acesso a ela, e isto certamente estará no meu relatório.

A permissão para a visita de representantes da ONU sinaliza uma preocupação da junta com a comunidade internacional?

PINHEIRO: Sem dúvida. Isto foi muito positivo e quer dizer que a junta militar teme o julgamento internacional. Mas trata-se de uma ditadura, e a repressão a manifestações pacíficas foi extremamente violenta. Mianmar tem hoje uma rede de opositores ao regime tão eficiente que imagens da minha visita ao país já estão no YouTube. Acho que a repercussão internacional sem dúvida ajuda a que haja melhoria, ainda que pequena, nas condições dos prisioneiros políticos.

O senhor acha que a oposição política ao regime militar está sendo fortalecida com a reação da comunidade internacional?

PINHEIRO: É difícil fazer uma avaliação do ponto de vista político. Acho que a reação internacional favoreceu o diálogo entre os militares e a oposição. Eles estão muito preocupados com os seus vizinhos asiáticos porque sabem que a economia do país depende do comércio internacional com outros mercados asiáticos. Eles não querem ficar isolados da comunidade internacional. Mas do ponto de vista interno, a situação é complexa. Mesmo a líder da oposição, Suu Kyi, fala numa transição que depende deste diálogo com os militares. Então, não vejo como fazer uma previsão sobre a questão dos direitos políticos em Mianmar. Fiz a viagem como relator de direitos humanos e todo o tempo me mantive estritamente dentro desta posição. Não sou nem posso ser um militante político. Faço o que posso para evitar este papel de intermediário. O que está no meu alcance é fazer um relatório minucioso sobre os desrespeitos aos direitos humanos e meu relatório vai mostrar que a situação ainda é muito grave em Mianmar.