Título: O antiapagão
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 23/11/2007, Economia, p. 34

O quadro de abastecimento de energia piorou: há muito menos gás do que se supunha quando foi feito o atual cálculo de prevenção de apagão. Isso é que faz com que a Agência Nacional de Energia Elétrica e o Operador Nacional do Sistema queiram elevar o nível dos reservatórios. É uma saudável precaução. Por outro lado, pode precipitar novos períodos de falta de gás para a indústria e os carros.

A Light reuniu grandes clientes industriais no Rio para avisar que a situação do abastecimento está crítica. Na Petrobras, reza-se para São Pedro ficar com a torneirinha aberta sobre o Brasil. O consumidor residencial do Rio tem vivido, de novo, pequenos episódios de apagão em dias de chuva, como na época da privatização da empresa. As indústrias que converteram sua geração de calor para gás estão temerosas. O que, de fato, está acontecendo?

O diretor-geral da Aneel, Jerson Kelman, diz que, quando se fez a atual "curva de aversão a risco", se contava com muito mais gás do que está realmente disponível. Essa curva é um modelo que foi montado na época do apagão para evitar um novo episódio. Foi calculada assim: se nos próximos 24 meses se repetir o pior biênio da História do Brasil em termos de chuva, qual o nível de água precisa ser mantido no reservatório agora para evitar novo apagão? O cálculo registrava que os reservatórios não poderiam cair abaixo de 52%. E agora, a Aneel e o ONS querem aumentar para 61%.

- Quando foi feita a curva, a gente contava com 100% das termelétricas e ainda 2.200 MW da Argentina. Hoje a Petrobras só se compromete a fornecer gás para 40% das térmicas, e não há energia vindo da Argentina. O quadro é outro - diz Kelman.

O problema: se o nível mínimo de água no reservatório é maior, mais cedo será acionado o esquema para ligar as termelétricas. Quanto mais cedo se mandar ligar as termelétricas, maior o risco de faltar gás para distribuidoras, indústrias e carros a gás.

- O Brasil tem de entender que, nos próximos anos, a oferta de gás será pequena - afirma Kelman.

Mesmo assim, o país tem toda uma estrutura de incentivos errada: o gás veicular é subsidiado, o governador do Rio insiste em manter o desconto de 75% no IPVA para o carro a gás. No Brasil, sobra gasolina, que é exportada; falta gás, e o produto é subsidiado.

- De 2001 a 2005, o crescimento do consumo de gás foi de 20% ao ano.

Kelman defende a medida preventiva. Diante de um novo quadro de oferta, aumentar o colchão de segurança hídrico. Mas isso pode criar a seguinte situação: em janeiro, as chuvas normais, os reservatórios enchendo, mas abaixo da marca, e a Aneel mandando ligar as térmicas, o que significa desviar gás que iria para as distribuidoras, as indústrias ou os táxis. Isso certamente aumentará mais a tensão - que não anda pequena - na área energética.

Anteontem à noite, a Light reuniu os grandes clientes industriais de energia elétrica no Rio para dizer que está vendo a situação como bastante crítica. A conta que eles apresentaram é de que, em 2002, imaginava-se que hoje haveria uma energia ociosa equivalente a 6.000 MW. Porém, chegado 2007, oferta e demanda estão bastante justas; não sobra energia. Um alto funcionário da Petrobras, dessa mesma área de geração de energia, disse que, na empresa, todo dia se reza para que haja chuva suficiente, o que fará com que não seja necessário recorrer às termelétricas. O período tido como o mais crítico é o começo do ano que vem, quando o GNL não terá chegado ainda para dar um pouco de alívio.

O gás que vai para as termelétricas é o mesmo que vai para as indústrias. Assim, os empresários estão preocupados pelos dois lados, pois, além de usarem bastante gás no processo de produção, também utilizam energia de forma intensiva. Um industrial do interior do Rio conta que, até pouco tempo, usava óleo combustível em suas caldeiras. A fonte de energia, no caso dele, equivale a cerca de 20% do custo. Nos últimos anos, porém, o preço do óleo triplicou. Sua solução - benéfica ao meio ambiente - foi migrar para o gás, que se manteve muito mais barato. Só que agora o cenário está todo diferente. Sem gás e não querendo voltar para o poluente óleo combustível, a solução que tem sido encontrada é usar lenha de eucalipto como combustível.

O sistema teria que funcionar assim: sempre que a água ficasse abaixo da curva de aversão ao risco no reservatório, a Aneel mandaria ligar as térmicas. Nunca deu certo, porque a Petrobras fez overbooking: vendeu o mesmo gás duas vezes. Ele deveria estar reservado para as térmicas, mas foi vendido para as indústrias e distribuidoras. As distribuidoras, por sua vez, venderam mais gás do que têm segurança de que vão entregar. A Petrobras prometeu à Aneel que até 2011 vai aumentar a oferta. Até lá, o país pode viver outros momentos de dificuldade de abastecimento.

A demanda futura de energia será suprida pelas águas da Amazônia ou pelo bagaço da cana do Centro-Oeste:

- O grande potencial remanescente de energia hidrelétrica está nos rios da passagem do planalto para a planície amazônica: Xingu, Madeira e Tapajós. Além disso, da fronteira agrícola da cana-de-açúcar, em Goiás e Mato Grosso do Sul, poderão vir 5.000 MW de bioeletricidade, energia das usinas de cana-de-açúcar - comenta Kelman.

Neste quadro, resta torcer para que isso não signifique o fim do cerrado e mais desmatamento da Amazônia.