Título: A lenda que fundou uma nação
Autor: Popham, Peter
Fonte: O Globo, 24/11/2007, Ciência, p. 55

Suíça comemora os sete séculos dos feitos do arqueiro Guilherme Tell.

Os suíços celebram este mês o 700º aniversário de uma história que os ajudou a se definirem como nação e que, desde então, inspira os republicanos: a lenda de Guilherme Tell.

Há 700 anos, um acontecimento dramático e terrível se abateu sobre um homem que pode ser considerado uma lenda por historiadores, mas que 60% dos suíços acreditam ter realmente existido.

Aconteceu, como contam, na vila de Altdorf, no cantão de Uri, cuja população atual é de 8.648 pessoas. O Passo de São Gotardo, que liga o cantão à Áustria, havia sido aberta há pouco tempo, e os Habsburgos de Viena despacharam para o vilarejo, por entre os picos nevados da região, um novo e cruel governante chamado Hermann Gessler. Para garantir que os moradores do povoado entendessem bem o significado da sujeição, Gessler ergueu na praça principal de Altdorf uma espécie de obelisco, colocou o seu chapéu na ponta e exigiu de todos que fizessem uma reverência ao passar pelo monumento.

Gesto rebelde com motivação política

Mas naquele dia em particular, 18 de novembro de 1307, um pequeno proprietário rural e seu filho que passeavam pela praça, passaram pelo obelisco sem fazer nenhum gesto. Pode ter sido apenas ignorância, talvez ninguém tenha contado a eles sobre a nova regra. Ou talvez, como os que perpetuaram a lenda preferem, o gesto tenha tido uma motivação política: ele estaria em danação se reverenciasse um opressor vindo da terra dos bolos de creme e das valsas (embora isso só tenha surgido depois).

Considerado por qualquer suíço patriota um verdadeiro demônio, Gessler notou que o fazendeiro vagando pela praça tinha um arco numa das mãos e, subitamente, a punição perfeita lhe ocorreu. Ele pediu a seus guardas que o detivessem e informou a ele que uma maçã seria colocada na cabeça de seu filho e que ele deveria acertá-la com uma flecha. Se Guilherme Tell não aceitasse o desafio, pai e filho seriam mortos.

Rei Artur e Robin Hood rejeitados

Em linhas gerais, a história de Guilherme Tell é tão conhecida quanto qualquer outra lenda na Europa. Todos conhecem o desfecho: Tell partiu a maçã em duas e o apavorado rapaz sobreviveu. O surpreendente é constatar que pessoas sofisticadas e muito bem educadas dos dias atuais acreditem que isso realmente aconteceu.

Todos amam as histórias de Merlin e do Rei Artur, Robin Hood e João Pequeno, mas há muito tempo ninguém as toma por fatos reais. Guilherme Tell é uma lenda exatamente do mesmo tipo, mas, por gerações, foi ensinada nas escolas suíças como um evento histórico. Hoje, embora muitos reconheçam na narrativa elementos ficcionais, ela ainda é vista como uma história muito importante. Por que?

Da forma como é contada, a história tem o seu primeiro evento crítico para a gestação do que seria a Suíça em 1291, 16 anos antes do feito de Tell: é o momento em que, tendo cercado e destruído os fortificados castelos dos invasores Habsburgos, camponeses dos três cantões da região central se reuniram em Rutli Meadow, no cantão de Uri, e, solenemente, juraram se unir contra a opressão estrangeira e formar um Estado democrático, igualitário e independente.

Eram boas intenções. Mas foram necessários o sangue-frio e a precisão de Tell, aprimorados pela alquimia das narrativas orais que o transformaram num herói, para que se tornassem realidade.

A ¿história¿ de Guilherme Tell prossegue e conta como, depois da divisão da maçã e de vários outros feitos, o arqueiro acabou por matar Gessler, inspirando seus compatriotas a se sublevarem e expulsarem os Habsburgos para sempre. E é aí que começa a história da ¿mais antiga democracia do mundo¿.

Historiadores estão cansados de desmentir a história de Guilherme Tell. Mas é como reunir dados contrários à existência do Jardim do Éden: é redundante e o especialistas correm o sério risco de parecer ridículos.

¿ É claro que você não pode provar que alguém não existiu ¿ afirma Roger Sablonier, professor de História Medieval da Universidade de Zurique. ¿ Mas quando leva em conta os critérios históricos, é muito implausível porque a lenda não coincide com as condições históricas do século XIII. Tell é uma figura inventada. Eu não conheço nenhum historiador profissional que defenda a tese de que ele existiu como uma figura histórica. Esse debate está superado e também é completamente desinteressante.

Versões similares em outros países

Mas o ceticismo não termina aí. Os especialistas são igualmente descrentes sobre o juramento de Rutli, o evento solene que marcou o início da história independente da Suíça. Com a palavra, novamente, o professor Sablonier:

¿ Há pouco de verdade (sobre Rutli) como fato histórico ¿ diz. ¿ Sequer se sabe com certeza onde se localizaria a `histórica¿ Rutli.

O uso que os suíços fizeram dessa antiga lenda é, de muitas maneiras, ainda mais fantástico do que a própria história. Lendas medievais sobre um herói que é obrigado a acertar um pequeno objeto posicionado sobre a cabeça do filho são inúmeras. E surgiram nos mais diversos lugares, como na Inglaterra, atribuída a Guilherme de Cloudsely, e na Dinamarca, onde o legendário herói Palnatoke foi obrigado a acertar uma maçã na cabeça de seu filho, enquanto este descia uma colina de esqui.

A versão suíça, como as outras, só foi escrita no fim do século XV, mas ganhou especial ressonância nos cantões. No início do século seguinte, ele já era o herói da luta pela independência dos três cantões fundadores da antiga Confederação Suíça.

Mais de quatro séculos se passaram, entretanto, antes que ele se tornasse o fundador arquetípico da nação suíça. E uma das razões pelas quais a Suíça se apegou a ele como símbolo quando a Inglaterra há muito já havia se afastado de Robin Hood é que, como Estado-nação, trata-se de um dos mais recentes, e improváveis, da Europa.

De acordo com historiador britânico Christopher Hughes, a cidadania suíça, na acepção moderna da palavra, só teve início depois da ocupação do país pela França, em 1798. Em 1803, as primeiras regiões de língua italiana se uniram à nova República da Helvécia. Importantes áreas de língua francesa foram absorvidas somente em 1815. ¿A atual Suíça de muitas línguas é um produto do início do século XIX¿, escreve Benedict Andersen em ¿Comunidades imaginadas¿.

Andersen, que em seu celebrado livro descreve como, antes da Declaração Americana de Independência, as nações do mundo foram, uma após a outra, imaginadas por seus habitantes e governantes para existirem, vê o nacionalismo suíço como pertencente à ¿última leva¿: é pouco mais de uma década mais antigo do que o nacionalismo indonésio ou birmanês.

Uma nação em busca de um mito

Mas não é nada engraçado ser uma das últimas, especialmente em se tratando de uma nação com características tão anômalas, quanto a falta de uniformidade lingüística de Áustria, Alemanha, França ou Reino Unido; a ausência de unidade religiosa da Itália; e nada da segurança de uma antiga dinastia. Daí a necessidade de criar uma gênese para a nação lá atrás, perdida nas brumas do tempo e personificada por um herói como Tell. Daí por que os historiadores suíços que negam a realidade histórica da lenda da maçã sempre foram bombardeados, mesmo recentemente, por mensagens de ódio e até ameaças de morte.

A lenda como mito de fundação nacional oferece aos suíços a possibilidade de se identificarem com Tell, um camponês corajoso o suficiente para desafiar o tirano austríaco. Ao fazer isso, relega a segundo plano uma realidade menos romântica: o segredo da longevidade da antiga Confederação Suíça, segundo Hughes, (ela sobreviveu de 1515 a 1803) ¿foi a sua dupla natureza. Contra inimigos externos, ela produziu uma unidade dos povos. Contra rebeliões internas, criou uma unidade das oligarquias¿.

Todos sabem que é dessa forma cruel que os estados bem sucedidos funcionam. Mas é bom imaginar outras maneiras.

Inspiração para peças e óperas

E os suíços não são os únicos inspirados pela história de Tell. Ela é, na verdade, uma versão atéia da história de Abraão e Isaac, com a intervenção de Deus no último minuto para salvar o filho condenado. Como tal, a história inspirou Friedrich Schiller em sua peça de 1804, ¿Guilherme Tell¿, em que o herói é uma personificação da violência revolucionária. Gioacchino Rossini escreveu uma ópera baseada na peça. John Wilkes Booth, o assassino de Abraham Lincoln também se inspirou nela. Hitler era um entusiasta da história até 1938, quando um suíço chamado Maurice Bavaud lhe fez uma dura crítica e, em represália, ele baniu a peça.

O escritor americano William Burroughs se serviu da história para um intuito diferente, mais macabro, quando, acidentalmente, atirou em sua parceira Joan Vollmer e a matou durante uma brincadeira de bêbados chamada Guilherme Tell, num bar do México, em 1951.

Mas os verdadeiros donos da história são os suíços. Depois da unificação, em 1848, eles imortalizaram Guilherme Tell com um monumento em Altdorf, uma pintura de Ferdinand Hoddler em que o herói aparece com jeito de deus, e as performances anuais da peça de Schiller ao ar livre que ocorrem até hoje. Tell foi o amuleto ao qual todos se aferraram durante a Segunda Guerra Mundial e o homem que deu sentido à sua decisão de dar as costas à Europa e às Nações Unidas.

E quanto mais estardalhaço os suíços fazem para enfatizar suas diferenças e sua independência em relação ao resto do mundo, personificadas pelo homem com o arco, mais facilmente passam despercebidas suas diferenças internas.