Título: Muitas balas na agulha
Autor: Bottari, Elenilce
Fonte: O Globo, 25/11/2007, Rio, p. 19

Tráfico de drogas do Rio é o maior consumidor de munição e armas da América Latina.

Aguerra entre quadrilhas de traficantes pelo domínio das favelas cariocas e os confrontos com a polícia transformaram o Rio no maior mercado consumidor do tráfico internacional de armas da América Latina entre cidades de países que não estão em guerra civil. A constatação é das delegacias especializadas no combate ao tráfico de armas e munição da Polícia Civil do Rio e do Departamento de Polícia Federal, em Brasília, com base em apreensões e investigações.

Exemplos do crescimento da oferta de armas e munição estrangeiras oriundas do mercado regular e dos excedentes de arsenais militares estrangeiros não faltam. No dia 8 passado, uma operação da Polinter apreendeu uma caixa de munição Lugger 9 mm, com identificação da marca e número de lote. A descoberta permitiu o rastreamento do produto, que foi produzido nos Estados Unidos e importado de Assunção, no Paraguai, neste ano. Uma transação comercial legal, que teve como destino final a quadrilha que comanda o tráfico na Favela do Jacarezinho.

Operações em março, junho e em outubro nos morros do Complexo do Alemão, em Ramos, e no Dona Marta, em Botafogo, confirmam o derrame de armamento estrangeiro: foram apreendidos mais de 20 mil balas chinesas, americanas, húngaras, mexicanas, tchecas e argentinas. A confirmação está nas interceptações telefônicas de quadrilhas.

Oferta é maior do que a procura

Se antes 80% da munição apreendida eram oriundos da indústria nacional, a partir do Estatuto do Desarmamento ¿ que em 2003 tornou obrigatória a identificação de cartuchos brasileiros ¿ o quadro se inverteu. Hoje o comércio regular internacional e o excedente de arsenais militares de países em guerra civil tornaram-se os principais fornecedores de armas e munição do tráfico de drogas do Rio.

¿ O tráfico de drogas é o maior cliente do tráfico internacional de armas. As quadrilhas do Rio são extremamente violentas. Por sua característica beligerante e expansionista, tornaram-se um grande mercado consumidor para o tráfico de armas e munições. E é um tráfico que chamamos de formiguinha. Sabendo do interesse dos traficantes por armamento, os atravessadores compram as armas e vêm oferecer nos morros cariocas. É muito mais comum a oferta do que a procura ¿ diz o titular da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae), Carlos OIiveira.

Os números confirmam as investigações. Nos seis primeiros meses do ano, a polícia do Rio apreendeu 55.997 cartuchos entre os calibres 5,56, 2,23, 7,62 e 9mm. No ano passado, foram apreendidos cerca de cem mil cartuchos, o que permite uma média de pouco menos de 300 tiros por dia.

¿ Nunca ouvi um grampo em que um traficante falasse sobre racionamento de munição. Isto não existe ¿ afirmou o coordenador da Core, delegado Rodrigo Oliveira.

De janeiro até agora, foram mais de 200 operações da Core em apoio a outras unidades entre pequeno, médio e grande portes realizadas em favelas da cidade. E, mesmo com todo o esforço, a situação ainda está longe de controle.

Exemplo disto é o próprio Complexo do Alemão. Após a grande operação realizada em 27 de junho, em que morreram 19 pessoas, a Força Nacional ocupou os acessos do complexo. Nada disto evitou a expansão do bando do traficante Tota, que, além de reabastecer seus arsenais, convocou traficantes de outras favelas e tomou o Morro do Adeus, em Bonsucesso, vizinho ao Alemão e historicamente inimigo daquela quadrilha. Dois dias depois de conquistar o Adeus, em 9 de novembro passado, a mesma quadrilha enfrentou a polícia durante o cumprimento de um mandado de apreensão que resultou na morte do policial civil do Core Eduardo Henrique de Mattos. Foram apreendidos no local uma grande quantidade de munição e armamento.

¿ Desde 2003 estamos fazendo diversas operações para retirar essas armas de circulação. E a prova de que esta repressão está funcionando está no custo do armamento para o traficante. Se em 2003 um fuzil custava R$6 mil, hoje o mesmo fuzil está valendo no morro R$40 mil. Mas, para que esse trabalho seja realmente eficaz, precisamos melhorar a integração entre as polícias e a cooperação internacional, ainda muito incipientes ¿ diz Carlos Oliveira.

Segundo ele, o maior problema hoje no estado não é mais o fuzil, mas a munição:

¿ Em uma conversa telefônica gravada com autorização judicial, o traficante Robson da Cruz, o Robinho Pinga, dono de um dos maiores arsenais do Rio, dizia para o cúmplice que a arma não ganha a guerra. Segundo ele, o que ganha a guerra é a munição. A lógica é esta. Apesar de ser a mesma rota de contrabando, a demanda pela munição é infinitamente maior.

Duas grandes fontes de contrabando foram desarticuladas. Em junho do ano passado, agentes apreenderam um arsenal formado por fuzis, metralhadoras, pistolas, granadas e milhares de balas escondidos numa chácara nos arredores de Cambé, no Paraná, onde também era recarregada munição para fuzil. Em conjunto com a polícia do Paraguai, foi fechada uma empresa paraguaia que fornecia armas e munição.

¿ Com o combate dos órgãos de segurança, como a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e as polícias estaduais, e a cooperação internacional, principalmente da polícia paraguaia, as apreensões aumentaram. Mas também o nosso trabalho aumentou. Os traficantes estão deixando de enviar grandes remessas em poucas ações para trazer pequenas remessas em grande quantidade de viagens, o que dificulta o trabalho policial. Precisamos cada vez mais da cooperação internacional e do trabalho integrado entre as polícias para combater esta nova forma de tráfico ¿ disse o delegado Vantuil Luís Cordeiro, da Divisão de Repressão ao Tráfico Ilícito de Armas, da PF.

Se antes o tráfico pela fronteira era feito em caminhões alugados pelas quadrilhas, novas prisões e apreensões revelam que hoje o contrabando passa em carros médios. Quase sempre o esquema é o mesmo: o cooptado recebe R$2 mil para levar um carro de Foz do Iguaçu até o Paraguai. Estaciona num motel, onde o carro é preparado para esconder armas e munição. Depois o mesmo motorista atravessa de volta a fronteira e segue viagem até o Rio, onde o destino será quase sempre, uma favela da cidade.