Título: Cabeça vazia, casa do diabo
Autor: Rocha, Rudi
Fonte: O Globo, 26/11/2007, Opinião, p. 7

Houve um tempo em que na América Latina abraçávamos paradigmas e relações de causalidade prometidas. Uma vez acreditamos que bastaria substituir importações e acumular capital físico. O milagre veio. O milagre logo se foi. Endividamos um par de gerações, jogamos fora as alianças, rasgamos as fotos, acendemos vela para outros santos. Seguimos um novo culto, dreams of freedom, ortodoxia cannabis: comporte-se, reforme-se and every little thing gonna be all right. O milagre veio. O milagre logo se foi. E então, o que fazer? Quem culpar? Para onde seguir?

Alguns disseram que a culpa não veio de casa; outros, que fizemos tudo pela metade. Salvos, encontramos um consenso, o álibi perfeito, o curinga que faltava naquela cartilha enxuta demais: as instituições, ou absolutamente tudo o que se poderia definir por instituições. Ainda não satisfeitos, embora sem rumo definido, corremos em busca de novas idéias, de inúmeras, longas, plurais, multitemáticas agendas de desenvolvimento.

Caracterizadas por tantos adjetivos, não por acaso, as agendas tornaram-se listas sem-fim de consensos óbvios: devemos investir em educação, nas crianças, estabilizar a macroeconomia, garantir a democracia, assegurar a independência do Judiciário, melhorar a infra-estrutura, cuidar do meio ambiente, distribuir renda... fortalecer as instituições, todas elas. Naturalmente deve estar sempre claro que boas recomendações e boas políticas são intensivas em tempo, são dedicadas ao longo prazo. De imediato mesmo, recomenda-se vender commodities para os chineses, chamar o Chávez de populista, não deixar a coca chegar aos gringos e esperar pela final da Libertadores.

As agendas de desenvolvimento para a América Latina nunca estiveram tão cheias e tão vazias ao mesmo tempo. Por definição, quando tudo é prioridade, nada é prioridade. Mais do que isso, tampouco nos bastaria construir uma ordenação desarticulada de prioridades - como a realizada recentemente durante a Consulta de San José, nos moldes propostos pelo Consenso de Copenhagen, onde foram ordenadas quase 50 prioridades ou recomendações de políticas públicas para os países da região.

O que as agendas de recomendações para a América Latina trazem é uma lista de componentes altamente correlacionados com o que se entende por desenvolvimento: mais educação, mais saúde, mais democracia... Temos insistido em gastar energias buscando boas respostas, às vezes deixando passar perguntas centrais - como gerar desenvolvimento? Como deslocar o debate das correlações para as relações de causalidade? Como fazer com que os consensos tornem-se realidade? Como de fato implementar as relações de causalidade mais robustas? Vale a pena nos livrar do trauma dos paradigmas frustrados e abraçar algo de novo? Ou melhor, o que há de novo?

O que há de novo? Duas tendências recentes me parecem relevantes. Por um lado, cada vez mais temos valorizado a economia política, a relação entre política, políticas e políticos, como um componente transversal e determinante à história do desenvolvimento econômico dos países latino-americanos. Talvez seja esta a principal barreira impedindo a realização e implementação dos consensos, o sucesso dos desenhadores de boas políticas públicas.

Por outro lado, me chama também atenção as motivações dos pesquisadores mais jovens, aqueles ainda no início da profissão, embora brilhantes, cada vez mais encantados pela carreira internacional e desinteressados pelo quintal de casa. Como sou um pesquisador em início de carreira, me permitam concluir este artigo com uma sugestão: meus caros, está na hora de contribuir para o debate, de pensar a política com ciência e sem preconceitos, de colocar a América Latina no centro de nossas agendas. Afinal de contas, cabeça vazia, casa do diabo.

RUDI ROCHA é pesquisador associado ao Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS).

N. da R.: Hoje, excepcionalmente, Paulo Guedes não publica seu artigo.