Título: Bolívia aprova Carta em quartel
Autor:
Fonte: O Globo, 26/11/2007, O Mundo, p. 20

Oposição boicota votação; protestos nas ruas deixam três mortos e 140 feridos.

Legenda da foto: MANIFESTANTES CONTRÁRIOS à aprovação da Constituição marcham numa rua central de Sucre, sob a vigilância da polícia: três pessoas já morreram nos confrontos

Legenda da foto: CARROS DA polícia que estavam no pátio de uma delegacia foram incendiados

Legenda da foto: HOMENS DETIDOS na prisão de San Roque escapam em meio aos distúrbios

SUCRE, Bolívia

Isolada num quartel militar de Sucre e sob violentos protestos, a Assembléia Constituinte da Bolívia aprovou na noite de sábado a nova Constituição do país, apoiada pelo presidente Evo Morales. A aprovação em primeira instância foi feita por maioria simples e sem a presença dos parlamentares da oposição, que não participaram em protesto. Choques entre manifestantes contrários à constituinte e policiais deixaram três mortos no fim de semana e cerca de 140 feridos, alguns deles em estado grave.

- Alguns grupos não aceitam que um indígena seja presidente, esse é o tema de fundo - afirmou Morales. - Esses grupos disseram que vão desgastar "o índio". Não aceitam que nós, pobres, também possamos nos governar.

Sem conseguir se reunir desde agosto por conta dos protestos de moradores de Sucre, que querem sua reinstauração como capital plena da Bolívia, a Assembléia Constituinte acabou se realizando num quartel militar da cidade. Desde sábado, Sucre está imersa em distúrbios entre a polícia e os opositores de Morales, boa parte deles universitários, que o acusam de seqüestrar a democracia ao ignorar os anseios de metade da população do país - o presidente tem a maioria parlamentar.

Nos enfrentamentos foram mortos dois manifestantes (um com um tiro no peito e outro com traumatismo no tórax) e um policial, linchado pela multidão. O presidente chamou os manifestantes de "grupos de delinqüentes". Instalações do Corpo de Bombeiros e delegacias foram atacadas durante os distúrbios e mais de cem prisioneiros acabaram fugindo. O governo informou que vai apurar o ocorrido.

A nova Constituição foi aprovada por aclamação com o voto favorável de 136 dos 138 constituintes presentes - a maioria dos 255 parlamentares - e na ausência dos 117 opositores. De acordo com relatos feitos por jornalistas que acompanharam a votação, a tensão na sessão constituinte foi aumentando à medida que chegavam notícias do recrudescimento da violência nas ruas.

"Sob fuzis" e "com sangue nas ruas"

Algumas autoridades locais chegaram a interromper os trabalhos, pedindo a suspensão da sessão em vista dos confrontos. O auge da tensão ocorreu quando chegou a notícia da morte de um manifestante. No que teria sido uma tentativa de apressar o processo, alguns procedimentos internos foram ignorados - o que, para alguns opositores poderia anular a aprovação da Carta - como a leitura de todos os 21 informes das comissões. Aprovada a Constituição, os parlamentares ficaram ilhados até às 23h30m de sábado na instalação militar à espera de uma escolta que pudesse retirá-los em segurança.

A Carta, aprovada em bloco, prevê um Estado plurinacional comunitário, economia mista (estatal, comunitária e privada), educação e saúde gratuitas. Além disso, torna constitucional a entrega dos recursos naturais ao povo. Dá ênfase aos pequenos proprietários em detrimento dos latifúndios, ratifica a autonomia departamental (dos estados), provincial e indígena. Um dos artigos mais polêmicos diz respeito à reeleição indefinida do presidente.

A maior crítica dos opositores é à aprovação por maioria simples, que beneficiaria sempre os governistas. Para os partidários do Movimento ao Socialismo (MAS) de Morales, é legítimo que a maioria imponha a sua política. Na análise da oposição, a Carta foi aprovada "sob fuzis" e "com as ruas cobertas de sangue".

- Não vamos legitimar uma Constituição feita num quartel. Ela vale tanto quanto papel higiênico usado - afirmou o líder do direitista Poder Democrático e Social (Podemos), Jorge Quiroga.

A nova Constituição precisa ainda ser aprovada artigo por artigo pelos parlamentares até 14 de dezembro. Depois deve ser submetida ao povo em referendo. Mas os constituintes não têm ainda data e local para voltarem a se reunir.