Título: Sucre amanhece sem polícia e sem governo
Autor: Galhardo, Ricardo; Valente, Leonardo
Fonte: O Globo, 27/11/2007, O Mundo, p. 28

PAÍS DIVIDIDO PELA CONSTITUIÇÃO.

Sucre amanhece sem polícia e sem governo.

Cidade "se autogoverna", limpa vestígios do confronto do fim de semana e enterra mortos no primeiro dia sem violência

SUCRE. Uma cidade de 230 mil habitantes sem polícia, bombeiros, prefeito, governador. Esta era a relidade de Sucre, centro dos distúrbios contra a aprovação da nova Constituição boliviana, ontem. Apesar da ausência de autoridades, a cidade viveu o primeiro dia de relativa tranqüilidade desde sexta-feira, quando começaram os protestos que deixaram três manifestantes mortos até agora - um policial, que teria sido linchado e chegara a ser dado como morto, está desaparecido - e 300 feridos. Milhares de pessoas voltaram a tomar conta do centro de Sucre durante o funeral de dois manifestantes mortos mas, devido à ausência de policiais, não houve violência.

Centenas de policiais deixaram a cidade no final da tarde de domingo aos gritos de "Sucre sem polícia" e "parabéns à imprensa" - uma ironia em relação à postura da mídia local. Hostilizada nas ruas pela população, a polícia teve que deixar a cidade às pressas para evitar novas cenas de violência.

- Foi uma vitória do povo. A polícia é o braço-armado do governo e abriu fogo contra jovens estudantes, trabalhadores idosos e mulheres. Isso não é segurança, é fascismo. Poderia ter havido um massacre - disse Manuela Ortega, uma comerciante de 53 anos que teve o braço quebrado a golpes de cassetete quando participava de um protesto no domingo.

Paradeiro do governador é ignorado

Com as autoridades ausentes, o povo de Sucre se mobilizou para limpar das ruas históricas da cidade os vestígios dos embates. Com vassouras e mangueiras nas mãos, os moradores retiraram as carcaças dos carros queimados na Praça 23 de Maio, a principal, e lavaram as ruas da foligem e das cinzas de barricadas, algumas ainda em brasa na manhã de ontem.

No início da tarde, Sucre parecia uma cidade turística pacata, com as pessoas sentadas nos bancos da praça principal e mulheres em trajes típicos vendendo salteñas (empanadas de carne). As únicas evidências dos distúrbios eram as pixações na porta da sede do governo do estado de Chuquisaca, do qual Sucre é a capital. Frases como "Chávez manda. Evo cumpre" e "Evo assassino" podiam ser lidas, em spray vermelho, nas paredes brancas do prédio construído no século XVII, um dos cartões-postais da cidade.

A aparente normalidade, no entanto, camuflava a tensão. Muitos comerciantes se recusaram a abrir as portas com medo de saques e assaltos. O principal motivo é a presença de dezenas de presos nas ruas. Os criminosos aproveitaram a saída da polícia e fugiram. De 120 fugitivos, 70 já teriam se entregado, segundo algumas fontes.

- Sucre é uma cidade muito tranqüila, mas agora estamos sem segurança nenhuma. Os bandidos estão soltos, os preços subiram. Não temos bombeiros, polícia nem autoridades. Uma simples caminhada noturna se tornou algo muito perigoso - reclamou Luiz Rodriguez, gerente de uma agência bancária que não abriu as portas ontem e deve permanecer fechada até a volta da normalidade.

As sedes do governo estadual e da prefeitura também permaneceram inativas. Ninguém sabe dizer o paradeiro dos mandatários. Considerado "traidor" pelos líderes civis que comandam as manifestações pela autonomia e para que Sucre seja a capital plena do país, o governador de Chuquisaca, David Sanchéz, era alvo de comentários desencontrados. Alguns diziam que estava em Santa Cruz, outros, em La Paz. O presidente do Comité Interinstitucional, Jaime Barrón, declarou que a cidade se autogoverna até que a situação seja normalizada. Já o governo de Evo Morales disse que está sendo estudado um plano de emergência para Sucre.

Durante todo o dia pessoas deixavam flores na porta da prefeitura, onde os corpos do estudante Juan Caros Serudo e do advogado Gonzalo Durán Caranzi, mortos nos protestos, eram velados. A notícia de que outro manifestante, o estudante José Cardozo, havia morrido no hospital em decorrência de um tiro recebido no domingo corria de boca em boca.

A situação voltou a ficar tensa pouco antes das 15h, quando os sinos da Catedral de Sucre anunciaram o início do funeral de Serudo e Caranzi. Os caixões deixaram a prefeitura ladeados por centenas de coroas de flores e estandartes de sindicatos e organizações civis, ao som do hino nacional. A enorme catedral, do século XVII, ficou pequena para a multidão que tentava assistir à missa de corpo presente celebrada pelo arcebispo de Sucre, dom Jesus Pérez, um dos líderes locais que tentam acalmar os ânimos da população. O arcebispo chegou a interromper a cerimônia devido aos gritos que vinham do lado de fora.

Explosões de bombas artesanais geraram correria

A frase "Evo assassino" era repetida como um mantra pontuado por palmas pelos milhares de manifestantes na praça central. Às 15h55m os corpos deixaram a igreja e seguiram para o cemitério acompanhados de uma multidão de 5 mil pessoas. Uma banda tocava marchas fúnebres e alguns manifestantes soltaram foguetes. Jornalistas do canal de TV estatal foram hostilizados.

Houve um início de tumulto quando o barulho de bombas foi ouvido a alguns quarteirões da praça. Os tremores chegaram a disparar os alarmes dos carros estacionados na praça. Algumas pessoas pensaram que se tratava de mais uma ofensiva policial e saíram correndo. A multidão só voltou a ficar calma quando percebeu que as explosões eram parte do protesto de um grupo de 500 mineiros, que chegou atrasado ao funeral.

Com os rostos cobertos por lenços, os mineiros traziam fileiras de bombas artesanais de dinamite atravessadas no peito. De vez em quando uma delas era detonada, ao que a multidão respondia com o mantra "Evo assassino, Evo assassino".

- As bombas fazem parte do nosso protesto. É uma tradição, pois a dinamite é nosso instrumento de trabalho - explicou o líder dos mineiros, Porfírio Mamani, enquanto mastigava freneticamente um maço de folhas de coca.