Título: Maioridade perdida
Autor: Damasceno, Natanael; Berta, Ruben
Fonte: O Globo, 02/12/2007, Rio, p. 19

MAIS DA METADE DOS MENORES INFRATORES MORREU OU COMETEU OUTROS CRIMES

Oano marcado pela trágica morte do menino João Hélio, que levou para o Congresso Nacional a discussão sobre a redução da maioridade penal, é também o primeiro para uma geração que, por ter completado 18 anos, não pode mais dizer: "Sou dimenor". A partir de hoje, O GLOBO revela, numa série de reportagens, o retrato atual dos jovens que responderam aos mais de cinco mil processos abertos na Vara da Infância e Juventude do Rio, em 2000. Inédita no país, a pesquisa, feita pelos repórteres durante um ano, põe em xeque o sistema de aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tanto na proteção dos menores quanto do restante da sociedade: dos 2.363 adolescentes infratores atendidos pelo estado na época, nada menos que 1.243 (52,6%) já foram flagrados cometendo crimes como adultos ou estão mortos.

Em sua maioria, são casos semelhantes ao de Anderson (nome fictício), de 22 anos, que hoje está entre os mais de 400 presos na carceragem da 59ª DP (Caxias). Sereno, ele relembra com clareza os seus primeiros contatos com o crime, em 2000, quando tinha apenas 14 anos. Naquele ano, foram duas passagens pelo juizado, por tráfico de drogas. Em 2002, mais uma, por roubo.

- Tudo começa quando você ganha o primeiro dinheiro. Aí, acabou. Primeiro, compra uma quentinha (para o traficante) e ganha dez reais. Depois, eles convidam: "Menor, tem como ficar vigiando ali para mim?" Só num final de semana, ganhava cem reais. Aí, perguntam: "Sabe segurar uma arma? Quer dar um tiro?" O primeiro disparo é cheio de medo... Hoje, desmonto pistola, mexo com qualquer fuzil... - garante.

"Assim como eu, existem vários e vai haver muitos"

No tráfico, Anderson não durou nem dois anos. Desentendimentos com bandidos que dominavam a comunidade onde ele morava, na Zona Oeste, forçaram-no a trocar a casa da mãe pelas ruas. A maioridade mudou pouco sua vida. Seguiu a rotina de roubos à mão armada que começou aos 16 anos, quase sempre praticados sob o efeito de drogas. Perdeu a conta dos assaltos que cometeu, mas foi preso por causa de dois. Em 3 de outubro de 2006, duas semanas depois de ter sido solto de seu primeiro período na cadeia, voltou a ser detido, ao tentar praticar uma "saidinha de banco". Desde então, aguarda julgamento na carceragem de Caxias.

- Não mudou nada quando fiz 18 anos. Só pensei: daqui a pouco faço 30. Preciso fazer um assalto melhor, o último. E até hoje estou tentando fazer o último - diz Anderson.

Sobre seu futuro, ele responde abrindo os braços, num gesto de incerteza. Sobre a solução para que novos infratores não surjam, ele diz o que não deveria ser feito:

- Assim como eu, existem vários e vai haver muitos ainda. Não adianta matarem um, dois, que não vai acabar. Não adianta.

O juiz titular da Vara da Infância e Juventude, Guaraci Vianna, considerou o índice levantado pelo GLOBO "milagroso" e afirmou que os números só não são piores principalmente por causa dos menores:

- É milagroso porque não há estrutura, dinheiro nem vontade política. Mas, de alguma forma, estamos colocando na cabeça do garoto a semente para ele se recuperar.

No entanto, a porcentagem de 52,6% de jovens mortos ou envolvidos em crimes após a maioridade não significa que o restante se recuperou. Pouco mais de 10% (245) dos adolescentes atendidos pelo estado em 2000 não aparecem hoje no banco de dados do Detran-RJ. Ou seja, devido à falta de identificação, não é possível afirmar se reincidiram ou sequer se estão vivos.

Há ainda outros 15% (361) que não foram flagrados cometendo crimes depois de completar 18 anos, mas reincidiram como menores após o delito de 2000. A certeza é de que só um em cada cinco jovens (pouco mais de 21%) não teve novas passagens ou morreu após passar naquele ano pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão estadual que atende os infratores. E mesmo esses podem ter cometido delitos que não foram registrados oficialmente.

Ainda assim, Guaraci defendeu a eficácia da aplicação do ECA, que completa 18 anos em julho 2008. E citou um dado polêmico:

- Nesse caso (do perfil de jovens do Degase), o índice de recuperação mundial, aceito como eficiente pelos medidores da ONU, é em torno de 12%. Então, entendemos que o ECA se mostrou um instrumento eficaz de recuperação em índices superiores ao exigidos.

Índice de recuperação de adultos é mais alto que o de menores

O coordenador de Segurança e Inteligência do Ministério Público, o procurador Astério Pereira dos Santos, que atuou como promotor no ano de 2000 e foi secretário de Administração Penitenciária (Seap) no governo passado, ressalta que o índice de 20% de recuperação de menores é inferior ao dos adultos presos no sistema penal. Segundo Astério, numa pesquisa empírica feita na Seap, em 2006, 37% dos apenados conseguiram se recuperar.

- Não é necessário ser estudioso no assunto para saber que é infinitamente mais fácil obter a reforma íntima de um adolescente infrator do que a de um adulto, por razões óbvias - avalia o procurador.

Desde maio, o Degase passa por uma intervenção da Secretaria da Casa Civil. Eduardo Gameleiro, atual diretor-geral do órgão, que comanda a reestruturação, diz que as mudanças devem começar a se tornar mais visíveis daqui a pelo menos um ano. Mas afirma que o Degase não resolverá o problema sozinho:

- São histórias que não começam nem terminam aqui. Se não for criada uma rede de assistência que englobe as famílias desses menores, será difícil reverter esse quadro.

UMA BAIXA POR SEMANA na página 22