Título: Os intervencionistas
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 02/12/2007, Economia, p. 36

A orientação dada pelo ex-ministro Antonio Palocci sobreviveu a ele por vários motivos. O presidente Lula tinha medo de mexer no que estava dando certo na campanha para a reeleição. A inflação baixa foi um grande eleitor de Lula em 2006, e ele sabia disso. O mundo continuou na boa fase de crescimento, e o governo continuou recolhendo os frutos do acerto da decisão de não mudar "tudo isso que está aí", o bordão favorito do presidente Lula no longo período de oposição. O sucesso da política alimentou o novo bordão: o "nunca antes".

O que mudou agora é que os ecos dos conselhos de Palocci já sumiram, e Lula tem gente demais dizendo outras coisas em seu ouvido: que é preciso reduzir os juros mais fortemente; que existem formas diferentes de atuar no dólar para evitar que ele continue caindo; que parte das reservas pode financiar um crescimento mais rápido; que a lei de petróleo deve ser mudada para o Estado se apropriar de mais recursos, que o Estado deve contratar mais, que ele pode gastar mais porque o aumento da arrecadação vai cobrir as contas. Principalmente que o Banco Central está errado. Talvez essa tenha sido a explicação para a trapalhada do presidente de reclamar que o Banco Central não o deixa gastar, apesar de o BC não ter qualquer ingerência na execução do Orçamento. Isso é coisa do Tesouro.

Não há no governo quem realmente acredite no cardápio: metas de inflação-autonomia do Banco Central-câmbio flutuante-superávit primário-lei de responsabilidade fiscal. O cardápio se mantém pelo sucesso das medidas e pelo medo que o intuitivo presidente Lula tem de que o excesso de criatividade na economia pode ser perigoso. Mas, aos poucos, ele se cercou de um outro pensamento. As idéias defendidas agora dentro do governo são, em geral, destoantes desse cardápio, pois, no Ministério da Fazenda, no Ipea, no BNDES, na representação do Brasil no FMI, na Casa Civil, há vozes discordantes. Até onde a vista alcança, só no Banco Central, é possível encontrar remanescentes dos defensores da receita que, um dia, o PT chamou de neoliberal, mas que, quando mantida, salvou o primeiro mandato.

Até quando um governo pode manter uma política apenas pelo medo de que alguma coisa dê errada se forem feitas alterações? Até quando um Banco Central sozinho, isolado e transformado em alvo poderá manter o núcleo de uma política à qual se opõem os economistas que cercam o presidente da República e que foi herdada de adversários políticos? São os enigmas atuais.

O que primeiro sucumbiu foi a política fiscal. Foram abandonadas todas as intenções de impor um teto ao aumento de gastos. A ordem de gastar, explicitada pelo presidente da República, confirma o afrouxamento dos controles que já estava em andamento. O resto da política se equilibra na taxa de sucesso. Enquanto estiver tudo dando certo, as mudanças serão apenas laterais.

Mas imagine um cenário de forte crise externa. O que os economistas do governo vão propor se houver aumento do risco-país, saída de capital, queda de bolsa, turbulências? Provavelmente, medidas de intervenção, com o argumento de que o Brasil já fez o dever de casa e, portanto, não pode ser punido por fatores alheios a nós. Mesmo se não houver crises, a queda continuada do dólar criará também incentivos para idéias de intervenção no câmbio. As benesses vindas de fora viram mérito do governo; os problemas que vierem de fora serão culpa da globalização. A sugestão para enfrentar turbulências será usar um ferramental intervencionista, que sempre ocupou as mentes dos economistas que hoje detêm os cargos principais no governo.

Alguém imagina a ministra Dilma Rousseff sugerindo aumentar o superávit primário para enfrentar qualquer turbulência? Alguém imagina o ministro Guido Mantega sugerindo medidas para cortar gastos? Existe algum defensor da proposta de limitar os gastos com pessoal? Que conselhos ouvirá o presidente numa "sala de situação" para enfrentar um cenário de crise?

Não há exatamente um conjunto de idéias consistentes alternativas à política atual. O que alguns economistas do governo defendem é mais superficial. É uma idéia vaga, lesiva e mal costurada de que é possível e saudável aumentar gasto público. Uma atitude contrária a todas as reformas, como a da Previdência, por exemplo. São idéias de intervenção no câmbio, para deter o capital especulativo e estancar a queda do dólar, para não prejudicar os exportadores. O problema é que, se alguma medida assim funcionasse, isso seria um incentivo aos exportadores, o que, contraditoriamente, traria mais dólares para o país, vale dizer, mais pressão baixista no câmbio. Os economistas dos quais o presidente se cercou neste segundo mandato preferem, em vez de metas de inflação rígida, um pouco mais de inflação que, na visão deles, permitiria mais crescimento; preferem redução do superávit primário, câmbio mais controlado, juros caindo mais, de forma voluntarista. Tudo isso inflaciona. Mas eles preferem ostentar o nome que, com sucesso, venderam à imprensa de "desenvolvimentistas". A velha política, herdada do governo anterior, se mantém dependurada no ar. Não tem mais apoios e suportes. Exceto no sitiado Banco Central.

Os intervencionistas

A política econômica não é mais a mesma. É apenas uma questão de tempo e oportunidade para que os economistas que hoje estão no governo, com visíveis sinais de poder, adotem medidas incompatíveis com o cardápio do primeiro mandato. O alvo dos economistas que são decisivos neste período do segundo mandato é o Banco Central. Eles planejam mudar a política monetária e cambial.