Título: O risco da permanência no poder
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 02/12/2007, O Mundo, p. 46

A¿Nada é tão perigoso como deixar permanecer por muito tempo um mesmo cidadão no poder. O povo se acostuma a obedecer, e ele se acostuma a mandar. Daí se origina toda a usurpação¿.

A frase, dita pela figura histórica maior da Venezuela, Simón Bolívar, em 1819, vai de encontro à mais polêmica mudança constitucional proposta da reforma defendida pelo presidente Hugo Chávez. Segundo a nova versão do artigo 230 da Carta, o mandato presidencial não só é aumentado de seis para sete anos, como se elimina o limite para reeleições.

¿ A proposta de reforma do artigo 230 vai na contramão das democracias mais desenvolvidas. Em geral, os países têm optado por mandatos mais curtos, com consultas mais freqüentes ao eleitorado. Assim, por exemplo, o mandato do presidente da França, que era de sete anos, com reeleições livres, foi reduzido para cinco anos, em 2000, com uma emenda constitucional, depois submetida a referendo. As reeleições continuam sendo livres ¿ afirma a cientista política Lucia Hippolito. ¿ Ao aumentar a duração do mandato presidencial e ainda permitir reeleições sucessivas, a Venezuela envereda pelo caminho do retrocesso político e institucional.

Chávez costuma comparar sua proposta com regimes parlamentaristas europeus. Porém, além de no sistema venezuelano o presidente acumular os postos de chefe de Estado e de governo e ter um mandato fixo ¿ e não sujeito à aprovação contínua do Parlamento ¿, ele controla os outros Poderes. No Tribunal Supremo de Justiça, Chávez aumentou o número de magistrados e indicou juizes aliados, conseguindo grande maioria. A Assembléia Nacional é composta apenas por aliados, mas isso devido à abstenção da oposição nas eleições de 2005. O país conta também com o Poder Eleitoral, composto na maioria por chavistas, que proibiu até mesmo debates sobre o referendo de hoje.

Na reforma, ainda se acrescenta o Poder Popular, composto por movimentos comunitários. Os representantes deste novo Poder, porém, não serão eleitos, o que está sendo interpretado como mais uma forma de aumentar o poder do governo central, que financiaria as comunidades.

Luis Roberto Barroso, professor, titular de direito constitucional da Uerj, considera perigosa a possibilidade de reeleições ilimitadas.

¿ Considerando os antecedentes de Hugo Chávez, que liderou uma tentativa frustrada de golpe de Estado em 1992 e faz uso de plebiscitos, manipulando o apoio popular para aprovar iniciativas de seu interesse, tal abertura é perigosa.

Para Barroso, a intenção e concentrar poder numa só pessoa:

¿ A Venezuela vive um momento preocupante de concentração do poder político no Executivo, de enfraquecimento das instituições e de perseguição aos adversários políticos. É um equívoco impressionar-se com a retórica supostamente progressista, igualitária e nacionalista. Trata-se do velho e recorrente populismo latino-americano, que já trouxe imenso atraso para o continente. Ele não é nem de esquerda nem de direita, mas autoritário e personalista. Filme antigo, com enredo conhecido e sem final feliz.

Um exemplo desde fenômeno, ironicamente, pode ser encontrado no mesmo Simón Bolívar que em 1819 alertava para o perigo de longos mandatos. Em 1826, presidente da Bolívia, ele redigiu uma Constituição para o país, na qual defende que o cargo que ele ocupava deveria ser vitalício:

¿ O presidente da República vem a ser, em nossa Constituição, como o sol, que dá vida ao universo. Esta suprema autoridade deve ser perpétua. Porque, nos sistemas sem hierarquias, se necessita, mais que em outros, de um ponto fixo ao redor do qual girem os magistrados e os cidadãos, os homens e as coisas. Dá-me um ponto fixo, disse um antigo, e moverei o mundo. Para a Bolívia, este ponto fixo é o presidente vitalício.

O poder corrompe mesmo as figuras históricas.