Título: Eles são as vítimas
Autor: Damasceno, Natanael; Berta, Ruben
Fonte: O Globo, 05/12/2007, Rio, p. 16

HISTÓRIAS REVELAM O DRAMA DE MENORES INFRATORES NAS MÃOS DO ESTADO.

Era maio de 2002 quando a tia de Carlos (nome fictício) foi ao Educandário Santo Expedito, internato de menores infratores em Gericinó, para mais uma visita ao sobrinho. Ao chegar à unidade, ela foi levada para a sala da direção, onde recebeu um papel que informava: o jovem, de 17 anos, tinha morrido dias antes e já estava enterrado no Cemitério do Caju. A causa foi uma sessão de espancamento a que ele foi submetido numa outra unidade de onde veio transferido: o Instituto Padre Severino, na Ilha do Governador.

- Quando fui visitá-lo, vi todos os garotos saindo dos alojamentos e nada dele. Não me deixaram nem fazer o enterro. Só recebi um papel. A informação que me passaram foi de que ele morreu por causa de uma discussão envolvendo um saco de biscoito, mas até hoje não sei com certeza - conta a tia de Carlos.

Tia pediu à polícia que levasse o sobrinho

Se são algozes ao cometer delitos, também não faltam relatos de adolescentes que expõem as falhas do estado na tarefa de ressocializá-los. Embora não haja números que dimensionem o problema, O GLOBO reuniu histórias que dão uma idéia de como eles podem se tornar vítimas do sistema. Os casos foram levantados nos processos da Vara da Infância e Juventude do Rio de 2000 ou relatados em entrevistas atuais com jovens infratores daquele ano.

Carlos ingressou no tráfico aos 10 anos, numa favela da Zona Oeste do Rio, dois anos depois de perder a mãe, vítima de HIV. Em 2000, quando tinha 15 anos, foi detido numa casa abarrotada de drogas. Não era seu primeiro flagrante. Mas ele sempre acabava liberado após o pagamento de propina. Daquela vez, no entanto, a tia insistiu para que os PMs o levassem:

- Falei com o policial: "Meu senhor, você pegou ele, não foi? Então faça o seu dever e leve para a delegacia. Só assim eu tenho sossego". Adorava o Carlos, mas não conseguia mais tirá-lo do tráfico.

O menor recebeu uma medida de semiliberdade, mas escapou da unidade, de muros baixos, ainda em 2000. Como foragido, começou a mudar de vida em 2002: passou a morar com a namorada, estudar e trabalhar como cobrador de uma Kombi, que fazia transporte alternativo.

Em março daquele ano, o destino o levaria para a morte. A companheira teve dengue hemorrágica. Ele a levou a dois hospitais, onde ela foi medicada de forma incorreta. Numa noite, ao voltar do trabalho, Carlos a encontrou morta. A polícia, ao apurar a ocorrência, descobriu que havia uma ordem para que ele fosse detido. "Num só dia, perdi minha companheira e minha liberdade", disse ele ao chegar ao Padre Severino. Dias depois, ele perdeu a vida.

O estado não falha só na proteção. Em muitos casos, seus próprios agentes são os responsáveis por violações de direitos humanos. Anderson (nome fictício), atualmente com 22 anos, lembra-se bem das três vezes em que passou pelo Padre Severino, entre 2000 e 2002, por tráfico de drogas e roubo:

- Sabe como os agentes batiam na gente? Botavam todos em volta de numa amendoeira e sentavam a madeira. O seu Avalanche, um grandão, pedia para escolher se era para bater na cara ou no peito.

Evandro Steele, ex-secretário estadual de Infância e Juventude e procurador aposentado, diz que, apesar dos abusos, são raras as punições de funcionários:

- Os garotos não conhecem os agentes por nomes, mas por apelidos. O ideal seria que todos fossem obrigados a usar crachás. Além disso, a corregedoria é vinculada ao Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas, que atende os infratores). Teria de ser independente.

A atual direção do Degase diz que está apertando o cerco aos maus profissionais. De julho a novembro deste ano, houve 15 punições decorrentes de sindicâncias. Trinta e três contratos foram rescindidos.

- Queremos substituir definitivamente a figura do agente pela do educador. Todos precisam se adaptar a isso - diz o diretor-geral do Degase, Eduardo Gameleiro.

Os abusos, no entanto, vêm também de outras fontes, como mostra a história de Tiago (nome fictício), hoje com 25 anos. Vítima de um erro de agentes da lei e da morosidade da Justiça, ele passou um mês e meio no Instituto Padre Severino sem ter cometido qualquer delito:

- Estava na praia, quando um guarda municipal me acusou de roubo. Expliquei que, se eu tivesse feito algo, não ia ficar ali. Mas não teve idéia. Fui para a delegacia e, de lá, para o Padre Severino. Fizeram a confusão pelo chapéu de palha que eu usava e que era parecido com o do ladrão - diz Tiago.

"Agora só falo com juiz como doutor"

Ele conta que, na primeira audiência com o juiz de menores, as vítimas não o reconheceram. No entanto, depois de 45 dias sob os cuidados dos agentes do Degase, Tiago ficou marcado pela experiência.

Ele diz que, apesar de não ter recebido sequer um pedido de desculpas, não processou o estado. Além disso, ao contrário da grande maioria dos colegas de cela, não deixou a experiência se interpor entre ele e um futuro melhor. Tiago, que começou a trabalhar aos 13 anos como empacotador de um supermercado, tornou-se corretor de imóveis e montou um ponto de mototáxi na favela onde morava. Hoje está casado, mora num bairro de classe média na Zona Sul e cursa direito.

- Agora só falo com um juiz como doutor. Nunca mais como réu - sentencia.