Título: Pai: Ignorado
Autor: Damasceno, Natanael; Berta, Ruben
Fonte: O Globo, 06/12/2007, Rio, p. 16

QUASE 20% DOS INFRATORES TINHAM APENAS O NOME DA MÃE NA CERTIDÃO.

Joelson (nome fictício) tinha pouco mais de 11 anos quando decidiu, em 2000, deixar a casa da mãe, no subúrbio do Rio. Para fugir, teve de desatar os nós das cordas com que o padrasto o amarrou a uma cama. Pouco antes, o menino já tinha tomado um tapa na cara, que revidou com uma ameaça.

¿ É bom você se lembrar muito bem do dia de hoje, porque o tapa que você me deu vai ser devolvido um dia com um tiro ¿ disse a criança ao padrasto.

Até hoje, a vingança de Joelson não se realizou, mas as conseqüências da fuga forçada de casa foram vistas nos últimos sete anos pelas ruas da cidade: o adolescente foi detido em três dos inúmeros assaltos que praticou. Atualmente, com quase 18 anos, ele cumpre medida socioeducativa num internato na Baixada Fluminense. No quinto dia da série de reportagens ¿Dimenor: os adultos de hoje¿, O GLOBO aponta uma das principais causas que levam os jovens ao mundo do crime: a falta de estrutura familiar. Dos 2.363 infratores atendidos pelo estado em 2000, 451 (19%) não tinham o nome do pai registrado na certidão de nascimento. Desses, 242 (54%) já morreram ou cometeram crimes após a maioridade.

`Onde já se viu tomar tapa na cara?¿

Ontem, a série mostrou que 81 infratores do ano de 2000 foram acusados de homicídio como maiores de idade. O GLOBO também revelou casos que mostram como os adolescentes se tornam vítimas nas mãos do estado.

Após a fuga da casa da mãe, Joelson admite que sua revolta só cresceu. Durante o dia, perambulava pelas ruas consumindo drogas e praticando assaltos. À noite, procurava a casa de outros parentes, como a da avó e a de um padrinho, para se refugiar.

¿ Onde já se viu uma criança tomar um tapa na cara de um padrasto, uma pessoa que não é nem do seu sangue? E minha mãe, que falava que me achou na lata do lixo? ¿ relembra o jovem.

Apesar da mágoa, o adolescente conta que tentou, por duas vezes nos últimos dois anos, voltar a se aproximar da mãe. Na primeira, levou uma caixa de bombons, disse uma frase e foi embora:

¿ Falei: ¿Filhos a gente pode fazer quantos quiser, mas mãe tem uma só¿.

O segundo encontro só serviu para quebrar de vez os vínculos. O jovem avistou a mãe enquanto andava em Madureira e a seguiu até convencê-la a marcar um passeio junto com suas cinco irmãs. Ia levar todas para uma conhecida lanchonete:

¿ Menti para a minha mãe e disse que estava trabalhando de entregador de pizza. Juntei dinheiro só para levá-las para passear. Mas, quando fui buscá-las, meu padrasto estava lá. Logo começamos uma discussão. Eu disse: ¿Quando eu era criança, você dava tapa na minha cara, agora eu piso na sua¿. Ele quebrou uma garrafa e partiu para cima de mim. Na briga, minha mãe partiu com a tesoura para cima de mim e furou as minhas costas. Saí de lá e não voltei nunca mais.

Há pouco mais de seis meses internado, o adolescente garante que agora mudará de vida. Na unidade em que está, na Baixada Fluminense, está se dedicando aos estudos e deve completar a 8ª série do ensino fundamental. Seu sonho é se alistar no Exército e tentar seguir a carreira militar.

¿ Agora, eu vou provar que posso mudar. Que os humilhados serão exaltados. É essa aí é minha história de vida ¿ conclui.

Figura da avó é a mais presente

Mônica Cunha, uma das coordenadoras do Projeto Muleque, que dá apoio psicológico a mães de jovens que cumprem medidas socioeducativas no Rio, confirma que a desestruturação familiar é um fator determinante no ingresso de adolescentes no mundo do crime.

¿ O que mais vemos são casos de famílias sem a figura do pai, em que a mãe sai para trabalhar às 5h, volta no fim da noite e não tem com quem deixar os filhos durante o dia. Elas arranjam outros companheiros, que, por sua vez, começam a brigar com os jovens dentro de casa. Da violência doméstica, surge a revolta ¿ comenta Mônica, que teve um filho que passou pelo sistema socioeducativo em 2003 e foi morto em dezembro de 2006.

Assistente social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) há nove anos, Rosângela Alves Garcia reforça o perfil familiar mais comum entre os adolescentes infratores:

¿ Esse infrator é, em muitos casos, uma criança que nasce de gravidez não planejada, no fim da adolescência da mãe. A presença do pai ou mesmo do avô é praticamente nula. A figura masculina aparece como referência de envolvimento no crime, de um tio, um parente. Uns jovens sentem vergonha disso, outros não.

Para ela, a figura da avó costuma ser a mais presente na vida dos adolescentes:

¿ E a avó não é aquela, como a da classe média, que está aposentada, só cuidando dos netos. Ela ainda precisa trabalhar, senão vai morrer de fome.