Título: Pessoas em movimento
Autor: Guterres, Antônio
Fonte: O Globo, 08/12/2007, Opinião, p. 7

O século XXI ficará marcado pelo movimento massivo de pessoas de um país ou continente para outro. O número de mulheres, homens e crianças vivendo fora de seus países de origem é hoje de aproximadamente de 200 milhões de pessoas, quase a população do Brasil, o quinto maior país do mundo.

Ao olhar para o futuro, parece certo que o mundo irá testemunhar novos e mais complexos padrões de deslocamento e migração. A menos que ações corretivas sejam tomadas, mudanças climáticas, degradação ambiental e desastres naturais tornarão a vida cada vez mais insustentável em várias partes do planeta. Conflitos armados serão gerados e alimentados pela crescente competição por recursos escassos, como água e terra cultivável. O aumento dos níveis dos mares pode levar ao desaparecimento de certas ilhas e ao deslocamento de populações inteiras. Ao mesmo tempo, a crescente disparidade entre vencedores e perdedores do processo de globalização induzirá outros milhões a olhar para o futuro além das fronteiras do seu próprio país.

Esses acontecimentos têm gerado diversos desafios que demandam uma resposta coerente e coordenada da comunidade internacional.

O primeiro desafio nasce de uma maior complexidade da natureza da mobilidade humana. A maioria das pessoas em movimento é formada por migrantes que deixam seus países porque não conseguem sustentar a família, porque querem melhorar seu padrão de vida e porque suas habilidades profissionais são necessárias em outros lugares. Outras são forçados a abandonar suas casas e solicitar refúgio em outro país como resultado de perseguições e conflitos armados. De acordo com a legislação internacional, essas pessoas são consideradas refugiadas. E como tal, têm direitos específicos, incluindo o direito de não ser forçado a retornar ao seu país de origem.

A responsabilidade do ACNUR, agência da ONU para refugiados, é assegurar os direitos desse último grupo. Em muitas partes do mundo, contudo, refugiados e migrantes viajam juntos, formando assim o que se conhece por "movimentos mistos", na mesma direção e utilizando os mesmos meios de transporte. Viajam em barcos frágeis e superpopulosos como os que são vistos no Mediterrâneo, na costa atlântica da África e no Golfo do Aden. Em muitos casos, são pessoas sem passaportes ou vistos.

Tais movimentos "irregulares" têm levado muitos países a levantar novas barreiras contra a chegada e entrada de estrangeiros. Essas medidas têm algumas conseqüências negativas, como impedir que refugiados solicitem o asilo seguro do qual necessitam. Nós precisamos, então, garantir que os controles fronteiriços permitam a essas pessoas o exercício dos seus direitos, reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de solicitar e gozar de asilo em outros países.

O segundo desafio vai além do mandato do ACNUR: providenciar mais oportunidades para que as pessoas migrem de maneira segura e legal. Muitos países têm reconhecido a necessidade de mercadorias, serviços, capital e informação circular livremente através das fronteiras nacionais. Porém, muitos resistem em aplicar o mesmo princípio para o movimento de pessoas, mesmo quando é evidente a necessidade de mão-de-obra migrante.

O resultado tem sido um crescimento massivo na escala de migração irregular e uma rápida expansão de uma indústria cujo propósito e benefícios se baseiam no contrabando e tráfico de pessoas através de fronteiras internacionais. Assim como os países estão tomando medidas severas para impedir tais atividades criminosas, deveriam também considerar a expansão e a abertura de novos canais de migração legal, seja para aqueles que buscam trabalho, que querem se juntar a familiares que já estão no exterior ou ter acesso a uma melhor educação.

Além de reduzir o número de migrantes irregulares, muitos dos quais submetem infundados pedidos de refúgio para não ser deportados, tais ações poderiam trazer benefícios econômicos substanciais para os países receptores, que ganhariam com a presença de uma população migrante jovem, ativa e pagante de impostos. Isto também poderia trazer vantagens para os países de origem, que receberiam um rendimento substancial das remessas que os trabalhadores mandam para casa.

As forças que impulsionam as pessoas a migrar estão sendo profundamente consolidadas dentro da economia internacional. É provavelmente uma ilusão pensar que esse número diminuirá de forma significativa com a atual e dinâmica etapa do processo de globalização. Mas grandes esforços são necessários para prevenir o surgimento de situações onde as pessoas são forçadas a deixar suas casas devido a abusos aos direitos humanos, conflitos armados e outras calamidades que afetam suas vidas e seu sustento.

Se esse terceiro desafio deve ser encarado de maneira efetiva, sérios esforços precisam ser feitos para promover o desenvolvimento sustentável em países onde a luta diária pela sobrevivência pode levar à violência e ao desrespeito às leis. Uma ênfase particular precisa ser dada na consolidação dos processos de construção da paz em países frágeis, que tenham se envolvido ou estejam saindo de conflitos armados.

Acima de tudo, governos de todas as partes do mundo precisam ser apoiados e encorajados a proteger a vida e o bem-estar de seus cidadãos, fazendo com que possam viver em paz e em prosperidade em seus próprios países.

Quando pessoas se movimentam de um país a outro, eles devem fazê-lo por opção, e não porque esta é a única forma de sobreviver.

ANTÓNIO GUTERRES é alto comissário das Nações Unidas para Refugiados.