Título: Sem hospícios, morrem mais doentes mentais
Autor: Aggege, Soraya
Fonte: O Globo, 09/12/2007, O País, p. 14

SAÚDE MENTAL: Brasil tem 16,5 milhões de doentes que precisam de internações e 20 milhões com doenças mais leves

Em cinco anos, governo fechou um quarto dos leitos psiquiátricos, sem criar serviço substituto; mortes subiram 41%

SÃO PAULO. Eliana perambula pelas ruas de São Paulo. Não sabe de onde veio. Nem se é mesmo Eliana. Lembra que já foi internada e tomava "remédios para a cabeça". Até que atendeu às ordens de "um rádio"- que alguém teria implantado dentro da sua cabeça. Desesperada, saiu de casa. Está perdida. Valentim Gentil Filho, professor da USP e um dos psiquiatras mais recomendados do Brasil, a cada dia encontra nas ruas mais doentes como Eliana, em surto e sem socorro. Indignado, escreveu ao Conselho Federal de Medicina (CFM): "Pergunto se, ao passar por um doente mental grave e não atendê-lo, estarei infringindo o Código de Ética Médica, além de cometer crime de omissão de socorro".

Não recebeu resposta. Provavelmente porque as histórias de Eliana e do próprio Valentim estejam se repetindo pelo Brasil, como pano de fundo de uma das mais complexas e silenciosas crises que o Brasil enfrenta na rede pública de saúde: a desassistência de pacientes mentais.

O dado mais aterrador é do próprio Ministério da Saúde: o número de mortes de doentes mentais e comportamentais cresceu 41% nos últimos cinco anos, como mostram dados inéditos obtidos com exclusividade pelo GLOBO. Foram 9.398 doentes mentais mortos em 2006, contra 6.655 em 2001. No mesmo período, um quarto dos leitos psiquiátricos do país foi fechado, sem que fossem criados serviços substitutos suficientes.

Asilos de fachada exploram doentes

A luta antimanicomial começou no Brasil há 20 anos, quando ganhou corpo na esquerda mundial o debate sobre o fim dos hospícios e o tratamento dos pacientes fora dos hospitais. A inspiração foi o modelo definido pelo italiano Franco Basaglia que, em 1961, assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia e transformou o manicômio em uma comunidade terapêutica, com princípios humanistas. O modelo se espalhou pelo mundo. Há 18 anos, o então deputado Paulo Delgado (PT-MG) apresentou projeto de lei propondo o fechamento dos hospícios (o projeto foi rejeitado). A política antimanicomial só foi estabelecida legalmente em 2001, com a lei 10.216, que protege direitos dos doentes e redireciona o modelo assistencial.

Seis anos depois, o país vive uma encruzilhada: fechou parte dos desumanos manicômios, mas não criou atendimento suficiente para doentes saídos dos hospitais. O Brasil tem 16,5 milhões de doentes mentais que precisam de internações eventuais, além de tratamento ambulatorial. E mais de 20 milhões de brasileiros têm doenças mentais mais leves e podem precisar de tratamento.

De 2002 a 2007, o total de leitos psiquiátricos caiu de 51.393 para 38.842. O governo se comprometeu a criar leitos em hospitais gerais e uma rede de atendimento comunitário, além de residências terapêuticas para pacientes. Mas, até hoje, só foram instalados 2.400 leitos em hospitais gerais - que, pelo projeto da reforma psiquiátrica, eram os únicos que deveriam continuar existindo depois do fechamento dos manicômios.

No lugar dos 12.551 leitos fechados, foi montada uma rede com 1.123 CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), a maioria com serviço ambulatorial. Relatório de 2005 do Tribunal de Contas da União avalia que a rede é restrita, com raros locais de internação.

O resultado está nas ruas, por onde perambulam antigos pacientes rejeitados pelas famílias. Rosa Ferreira de Souza, de 33 anos, viveu em hospícios. Já levou "banho de vassoura" (surra) porque agredia funcionários. Passa as noites diante do CAPS de Perdizes, em São Paulo.

- Gosto de dormir na porta, porque quando abrem já tenho atendimento. Tomo remédio todo dia porque, sem ele, as pessoas falam uma coisa, entendo outra e fico agressiva. Aqui fico mais tranqüila - explica.

Muitos doentes que, como Rosa, conseguiram sair de hospícios não recorrem aos CAPS. João Nogueira perambula pelo Centro de São Paulo e dorme no Largo do Paissandu. Ele conta que morou 20 anos no Hospital Juquery, em Franco da Rocha, e foi liberado há dois anos:

- Tinha família, mas não me quiseram. Acham que vou botar fogo em tudo. Não gosto deles. No hospital era ruim, tinha choque, mas davam mais comida.

O atendimento ambulatorial também é precário. Pesquisa do Ibope para a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em 2007, com 2.000 doentes que dependem da rede pública, revela que só 33% conseguiram agendar consulta em menos de 30 dias, mesmo em crise.

- São pessoas com sofrimento grave, que ameaçam se matar, agredir outras. Não defendemos internações permanentes, mas eventuais, para salvar vidas - diz o presidente da ABP, João Alberto Carvalho.

- Desinternar pacientes é o objetivo dos médicos. Despejá-los nas ruas tem sido a ação do governo. É como se, acabando com os hospitais psiquiátricos, se acabasse com a loucura. O governo quer fazer a reforma pelo fim - reclama o presidente do Instituto de Psiquiatria da USP, Wagner Farid Gattaz.

O presidente da Associação dos Amigos e Familiares de Doente Mentais da Bahia, Gilson Magalhães, diz que, em Salvador, estão surgindo clínicas de fachada que ficam com a aposentadoria dos doentes:

- Estão surgindo os piores depósitos de loucos. Eles ficam fechados, sem tratamento nem fiscalização. Temos visto doentes que não têm família abandonados nas ruas, confundidos com andarilhos, mendigos ou criminosos - disse Magalhães.

Tratamento interrompido

Em Sorocaba, no interior paulista, o problema maior tem sido ambulatorial:

- Os doentes recebem medicamentos por três, quatro meses. De repente, não recebem mais. Quem cuida dessa reforma não sabe o que é ter um doente mental em surto em casa - protesta o presidente da Associação dos Familiares de Doentes Mentais, Douglas Parra.

Em Porto Alegre, o Sindicato dos Médicos lançou a campanha "Loucura é a falta de leitos psiquiátricos". O governo gaúcho lançou uma contraproposta:

- Vamos pagar R$1.500 por leito aberto em hospital geral. Se não fossem os viciados em drogas, que aumentam a cada dia, teríamos leitos suficientes - disse o secretário de Saúde do estado, Osmar Terra.

Leis e portarias determinam que o Brasil tenha 0,45 leito para cada mil habitantes. Mas o país só tem 0,21, e ainda precisa fechar manicômios para seguir com a reforma psiquiátrica. Na cidade de São Paulo, a rede só absorve 45% da demanda.

- A cada mês, em média 600 doentes que receberam recomendação psiquiátrica para serem internados estão ficando sem socorro - diz o coordenador de Saúde Mental do Município, José Moura Neves Filho. E resume: - A gente tanto fez para derrubar os muros dos hospícios que confundiu as coisas. O movimento antimanicomial criou preconceito com a psiquiatria. Quase não temos hospitais psiquiátricos nem onde internar casos graves.