Título: Sem consenso
Autor: Maggie, Yvone; Lamounier, Bolívar
Fonte: O Globo, 11/12/2007, Opinião, p. 7

A Câmara dos Deputados debateu, em Audiência Pública, no dia 26 de novembro, o projeto de lei que instituiria o Estatuto da Igualdade Racial. A sessão foi presidida pelo presidente da Casa, deputado Arlindo Chinaglia. Compunham a mesa, além do presidente, a ministra Matilde Ribeiro e o senador Paulo Paim, autor do projeto.

O plenário não estava cheio, e logo se soube que seriam 24 expositores. Ao todo, ao longo das quatro horas de sessão, havia exatos seis deputados, integrantes da Frente que apóia o projeto, liderados por Carlos Santana (PT-RJ). Velhos militantes do Movimento Negro histórico e alguns mais recentes completavam a audiência. Os frades franciscanos da ONG Educafro trouxeram seus liderados, jovens estudantes negros que, desta vez, ficaram em silêncio.

Diz o projeto, no artigo primeiro: "Esta lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, para combater a discriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado" (grifo meu). É a visão do Brasil como um país dividido em duas "raças": afro-brasileiros, de um lado, brancos do outro.

É essencial frisar que o projeto do Estatuto não vai refletir uma divisão; vai criá-la artificialmente. O Brasil será oficialmente dividido, de cima para baixo, em afro-brasileiros e brancos. O Estado ficará autorizado a impor identidades "raciais" aos cidadãos.

Discordando frontalmente dessa visão, nós que combatemos o projeto enfatizamos os riscos que essa pretensa solução traz embutidos. Ninguém deve se surpreender se, dentro de alguns anos, tivermos as duas "raças" que se quer artificialmente instituir de armas em punho, tratando cada uma de defender seus supostos "direitos".

Um foco importante da discussão foi o artigo segundo, parágrafo terceiro, do projeto, onde se lê: "... consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga." Ora, a identidade de afro-brasileiros sempre foi assumida por todos os brasileiros. Para o Brasil, ela não é estigma, é um patrimônio. Diferentemente de outros projetos discutidos nos últimos anos, o atual agride o sentimento de brasilidade no que ele tem de mais profundo: o orgulho do que construímos ao longo de 500 anos, um país ainda cheio de problemas, é certo, mas valioso e promissor.

Mas o que agora nos estão dizendo é que afro-brasileiros legítimos são apenas os definidos como tal pelos mencionados artigo e parágrafo. A identidade que julgávamos pertencer a todos passará (se o projeto for aprovado) a ser de uso exclusivo de alguns. Será uma identidade contraposta à dos "brancos". Eis aí o ponto de vista expresso pelos afro-brasileiros que compareceram à audiência na Câmara Federal!

Nós, ao contrário, entendemos que a identidade brasileira não se constitui em função de "raças" ou "etnias". A imposição legal é que visa (e irá) dividi-los dessa forma. É preciso afirmar com toda a ênfase possível que não cabe ao Estado criar ou "proteger" identidades sociais. Fazê-lo é acender o estopim de conflitos numerosos e muito sérios. É importante conhecer o relato feito pelos representantes do Movimento Mestiço e Caboclo sobre o que vem ocorrendo na Amazônia. Naquela região, caboclos, ribeirinhos e muitos outros mestiços que não se definem em função de um passado africano são discriminados e agredidos por aqueles que se identificam nesses termos: como afro-brasileiros ou negros. Com igual ênfase, os representantes do Movimento Negro Socialista presentes à sessão denunciaram o projeto como uma tentativa de obscurecer a divisão da sociedade em classes sociais. Oprimidos, segundo eles, são os trabalhadores os dominados em função de sua condição de classe.

Apesar das discordâncias acima relatadas, um ponto importante ficou estabelecido com meridiana clareza: o projeto do Estatuto não resultou de nenhum consenso da sociedade. Pelo contrário, só o que ele tem feito é provocar (ou aprofundar) dissensos.

A Câmara dos Deputados precisa refletir seriamente sobre o projeto que tem em mãos. Recusamo-nos a crer que o Legislativo venha aprovar um texto que não trará os benefícios propalados e que seguramente irá dividir artificialmente os brasileiros em grupos "raciais"; um texto que, sem dúvida, colocará em campos opostos milhões de crianças e jovens que compartilham salas de aula por este país afora. Onde hoje existem jovens que somente se vêem como brasileiros, cujo objetivo é melhorar de vida, ajudar a família e a comunidade, servir ao país, amanhã (se o malsinado projeto for aprovado) teremos "afro-brasileiros" e "brancos". Quem se responsabilizará por tamanha temeridade?

YVONNE MAGGIE é antropóloga. BOLÍVAR LAMOUNIER é cientista político.