Título: O índio restaurado
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Globo, 13/12/2007, Opinião, p. 7

Evo não é Hugo. A nova Constituição boliviana, ao contrário do falido projeto constitucional chavista, não é a pedra da lei de uma ditadura. O texto aprovado equilibra os poderes do presidente e do parlamento e consagra as liberdades políticas. No sonho de Hugo, a Venezuela é uma emanação da sua vontade revolucionária. No sonho de Evo, a Bolívia é a moldura para o renascimento das "nações indígenas originárias".

Uma revolução nacionalista sacudiu a Bolívia em 1952. O levante dos mineiros de estanho desmantelou o Estado liberal quase fictício, que apenas chancelava os negócios do cartel minerador dominado pela família Patiño. O poder caiu nas mãos do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e, no seu período heróico, a revolução nacionalizou as minas, implantou o sufrágio universal, deflagrou a reforma agrária e introduziu a educação rural. Os operários das minas eram indígenas, mas a sua revolução não reconhecia diferenças étnicas entre os bolivianos.

A nova Constituição, que define a Bolívia como um "Estado Unitário Plurinacional", representa uma renúncia à nação única dos revolucionários de 1952. Ela estabelece que, nas futuras entidades autônomas indígenas, os parlamentares serão escolhidos segundo procedimentos de "democracia comunitária" e todos estarão sujeitos à "justiça indígena originária", exercida por autoridades tradicionais.

Entre os 9,1 milhões de bolivianos, os índios são cerca de 5 milhões. Quéchuas e aymarás somam 90%, mas existem outros 34 grupos lingüísticos. No último meio século a população urbana da Bolívia saltou de 34% para 65% do total. Hoje, metade dos índios vive nas cidades. O espanhol, antes idioma exclusivo dos brancos e mestiços, atualmente é tão falado entre os indígenas quanto o quéchua e o aymará. El Alto, na periferia de La Paz, tornou-se a maior cidade indígena do mundo, com mais de 870 mil habitantes. A cidade funciona como nexo cultural entre as comunidades aymarás do interior, La Paz e as correntes de informação globais.

Ironia da história. Quando os índios bolivianos eram índios, não existia uma "questão indígena" na tela da política da Bolívia. Hoje, quando as identidades indígenas tradicionais se dissolvem nos caldos transculturais da globalização, a Constituição restaura um índio ancestral imaginário.

Não foi Evo Morales quem ergueu a bandeira do Estado Plurinacional. Há duas décadas, só o movimento katarista, de aymarás urbanos, falava numa "questão indígena". O tema explodiu no cenário nacional em 1992, com a aliança eleitoral entre o MNR e os kataristas que levou ao poder o governo ultraliberal de Sánchez de Lozada. Sob aquele governo, a Bolívia foi definida como país multiétnico e concedeu-se participação da "sociedade civil" (leia-se: ONGs) nos governos locais. A nova Constituição radicaliza o experimento, permitindo que regiões se declarem indígenas por decisão de maioria. No Altiplano, em municípios mistos, minorias brancas e mestiças podem se ver excluídas do sistema nacional de justiça, bem como do direito de eleger representantes pelo voto direto.

Evo Morales emergiu como líder sindical dos cocaleiros e, fiel ao paradigma da nação única, enxergou-se a si próprio e à sua base social como camponeses bolivianos. Só mais tarde, no limiar do poder, descobriu-se como índio e passou a descrever a Bolívia nos termos elaborados pelos intelectuais do multiculturalismo. A operação propiciou-lhe um novo campo de alianças, com líderes políticos e ONGs internacionais que manipulam o critério da ancestralidade como veículo para a criação de centros regionais de poder.

A Constituição plurinacional atira a Bolívia na fogueira das políticas de identidade. As elites dirigentes da Meia-Lua, no próspero oriente boliviano, só se opõem à nova Constituição porque as autonomias departamentais não lhes entregam uma parcela majoritária das rendas do petróleo e do gás. No mais, estão de acordo com a separação legal e territorial dos bolivianos de ancestralidade indígena. Do jeito deles, também são multiculturalistas.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br.