Título: A Amazônia sempre foi moderna
Autor: Becker, Bertha K.
Fonte: O Globo, 16/12/2007, Opinião, p. 7

Aquecimento global e negociações sobre o Protocolo de Kioto trazem novamente à baila a politização da questão ambiental com foco na Amazônia brasileira. Duas faces da mesma moeda ressaltam a responsabilidade da região: grande emissora de carbono ou grande potencial para salvar o planeta. Sob essa retórica, retoma-se num patamar mais ameaçador a idéia de seu destino como região a ser preservada.

Difunde-se a imagem da Amazônia como extremamente frágil e problemática quanto às possibilidades de sua utilização, contribuindo para imobilizar decisões e ações e para obscurecer a significância do seu imenso patrimônio natural e cultural.

Não se pretende entrar no mérito do relatório do International Panel of Climatic Change e dos desacertos em Bali, o que se deseja aqui é introduzir uma outra imagem, positiva, da Amazônia, sob a ótica regional e nacional.

Cabe ao Brasil enfrentar o desafio de conter o desflorestamento. É preciso inovar, com um modelo capaz de utilizar adequadamente esse patrimônio, gerar riqueza e trabalho para as populações, e alicerçar seu futuro e o do Brasil e demais países amazônicos.

Há condições para desenvolver uma estratégia com esse objetivo. De início, escapando do falso dilema entre preservação e desenvolvimento destrutivo, que não admite alternativas. A seguir, recorrendo às características específicas e à história da região.

Contrariando Bruno Latour - jamais fomos modernos - a Amazônia é uma região acostumada com a modernidade e bem mais senhora de um perfil civilizatório do que o imaginário internacional faz crer, afirma Marcio de Souza. Com efeito, a região foi ocupada e povoada em surtos associados às grandes inovações da economia-mundo: navegação marítima/drogas do sertão, revolução energética/borracha, tecnologias nacionais de infra-estrutura/expansão da fronteira agropecuária.

É verdade que tal modernidade calcada na extração de recursos naturais pouco beneficiou a região. A exclusão social foi constante e permanece até hoje.

Hoje, deve-se reconhecer que a magnitude e a sensibilidade do patrimônio natural e cultural da Amazônia exigem uma estratégia que combine high tech com inclusão social. Não foi ainda introjetada no imaginário social e nas políticas públicas a mais recente e mais poderosa inovação da economia-mundo: a revolução científico-tecnológica na informação e microeletrônica que, como revela Castells, não se resume a uma nova técnica, mas é uma nova forma de produção que afeta todas as relações sociais e de poder. Revolução científico-tecnológica a ser utilizada não mais para extrair e exportar recursos, mas para valorizá-los em benefício da região de forma decisiva.

Alguns componentes da estratégia proposta podem ser sugeridos. Ciência, tecnologia e inovação, articuladas à educação, têm papel crucial na definição de um novo paradigma capaz de utilizar sem destruir o patrimônio regional. Somente atribuindo valor econômico à floresta em pé poderá ela competir com as commodities e não ser derrubada. A identificação de produtos a serem organizados em cadeias produtivas até o seu beneficiamento final, sem destruir a natureza, é essencial tanto em áreas florestais como naquelas já alteradas onde há amplas possibilidades. Produzir para conservar, excetuadas as áreas de preservação, é um lema essencial para a região.

A valoração dos serviços ambientais é prioritária. Serviços de alto valor agregado para produtores baseados na informação e no conhecimento, e suas redes, são considerados na literatura científica recente como a inovação fundamental para o desenvolvimento, e geram uma rede de cidades mundiais que comandam o processo de globalização. Os serviços ambientais prestados pela floresta amazônica são singulares, de afirmação da vida em si, e não diretamente para produtores. Trocas de créditos de carbono localizadas não consideram os serviços que estão sendo continuamente prestados pela massa florestal sul-americana. Formular um conceito amazônico de serviços ambientais, e planejar Manaus como cidade mundial para organizá-los, é uma iniciativa urgente.

Mudanças institucionais são condição da estratégia. Desde a ampliação dos recursos humanos em C/T/I, à articulação das políticas públicas e projetos, à criação de institutos técnicos para formação de empreendedores e criação de universidades e laboratórios da floresta, à solução da questão fundiária. Os conflitos sociais na Amazônia derivam da disputa pela apropriação da terra. No entanto, no contexto das transformações introduzidas para revolução científico-tecnológica, não é mais a propriedade da terra que garante o desenvolvimento, mas sim o acesso a outras condições de produção, tais como a informação, a capacidade de gestão, o crédito, o sistema de comercialização. A evidência empírica na Amazônia atesta essa afirmativa com as dificuldades dos projetos de assentamento e de produtores familiares em geral. Em nível teórico, trata-se do monopólio histórico do acesso ao mercado que necessita ser rompido, e para tanto a organização de cadeias produtivas podem muito contribuir.

É no território que a estratégia se concretiza ressaltando o papel das infovias e das cidades no ordenamento do território. Se, historicamente, as cidades surgiram para sustentar a ocupação e a exploração dos recursos regionais, hoje cabe a elas antecipar o novo modelo de desenvolvimento: 70% da população da Região Norte vivem em núcleos urbanos (Censo 2000); as cidades concentram a informação e o conhecimento, prestam serviços básicos para uma população deles extremamente carente, e serviços para as cadeias produtivas. Conectadas pelas infovias, as cidades devem comandar uma estrutura produtiva em rede que, ao contrário da produção extensiva, contígua, assegura a manutenção de extensões florestais entre elas. Por sua vez, como nós de infovias e das redes de produção e de relações sociais, as cidades são o relay de sub-regiões que organizam a vida socioeconômica e política da Amazônia.

Essas são algumas reflexões que se propõem para um diálogo em favor da Amazônia.

BERTHA K. BECKER é geógrafa.